O cineasta, seus filmes e suas contradições: para conhecer e criticar Walter Salles

Foto: Alex de Carvalho (via WikiCommons).
Por Diogo Dias
O acontecimento cinematográfico brasileiro mais abrangente dos últimos anos, o lançamento e a recepção do filme Ainda Estou Aqui (2024), tem mexido com os ânimos do público e da crítica. Majoritariamente celebrado, o filme de Walter Salles despertou a atenção de uma gama bastante ampla de pessoas. Dos cinéfilos aos espectadores que há anos não visitavam uma sala de cinema. Mas apesar do impressionante poder de comoção do longa-metragem, ele também provocou incômodos e críticas ao seu recorte narrativo, por não tratar da história dos trabalhadores, das periferias. Entre a badalação corroborada pelos mecanismos da indústria cultural (entrevistas, premiações, ensaios fotográficos etc.) e a sensibilização ou o estranhamento das plateias está a obra fílmica. Como todo trabalho artístico, ela possui uma lógica interna que carrega potências e limitações. Por isso, pretendemos aqui fazer um convite à crítica da prática artística do realizador Walter Salles. Pois é na dialética entre as obras e seu contexto histórico que podemos encontrar algo que realmente nos interessa.
É um princípio materialista fugir da essencialização ontológica, da idealização metafísica em quaisquer dos nossos exercícios críticos. Essa tarefa relativamente clara torna-se um grande desafio quando tratamos das práticas artísticas. É tentador e dominante o pensamento que essencializa o gênio artístico, sua excepcionalidade diante dos demais humanos comuns. O porquê desse calcanhar de Aquiles, presente também no materialismo, não é simples de identificar. Mas me arrisco em dizer que há uma deficiência no que diz respeito ao entendimento dos processos de subjetivação dos indivíduos em meio à sua experiência de classe quando se trata de arte e cultura.
Esses processos não são totalmente compreensíveis apenas com as análises da economia política e das formas sociais. Há algo na difícil dialética entre indivíduo e grupo, indivíduo e classe, indivíduo e mundo que possui seu funcionamento próprio. Testemunham isso as inúmeras tentativas de mapear as dinâmicas dos afetos, do desejo, dos sentimentos no universo do político. Uma simplificação resolveria a questão com dicotomias ontologizantes: sujeito x objeto; aparência x essência; indivíduo x sociedade. Acontece que isso tudo se tece de maneira complexa e de difícil determinação, numa lógica de constante abertura dialética. Processo que as práticas artísticas não reificadas tentam mimetizar para captar tal densidade de experiência. Digo tentam, porque o que realmente conseguem é criar uma complexidade outra que carrega seu teor de verdade em relação ao momento histórico do qual emerge.
Portanto, uma crítica estética materialista não pode cair em essencialismos, por mais tentadores que sejam. Como escreveu Walter Benjamin, em Rua de mão única: “Crítica é uma questão de correto distanciamento”. No meu entendimento, mais que uma questão de perspectiva privilegiada, esse distanciamento, hoje, previne o turvamento do pensamento da crítica pelos afetos mais imediatos do crítico – do público. Benjamin pensava a crítica como um salto para além da causalidade mais imediata, uma tomada de posição consciente. É claro que não é aceitável para uma crítica materialista ignorar a situação de classe do realizador. Walter Salles não é apenas um burguês, é um bilionário. Fato que para alguns de nós, trabalhadores com mínima consciência de classe, incita afetos de desconfiança, revolta, ressentimento, injustiça. Afinal, por que um bilionário colhe os louros de uma crítica social que habita o íntimo de todo oprimido? Por que a crítica mundial coloca Salles como uma unanimidade desse tipo de sensibilidade política, enquanto filmes de jovens realizadores sofrem para conseguir seu público? São perguntas válidas e pertinentes cujas tentativas de respondê-las infelizmente não cabem neste texto. Por agora é suficiente lembrar que para uma crítica realmente materialista da cultura, não podemos nos deixar dominar pelo espantalho e devemos tomar a distância adequada para determinar o que de fato nos interessa. Neste breve texto são os filmes nossa principal preocupação, a mediação concreta entre o realizador e o público. O que proponho aqui é tomar essa contradição do cineasta, seus filmes e sua classe pelo colarinho e ir às obras de Salles. Atacá-lo por ser burguês é um erro essencialista.1 Analisar seu olhar cinematográfico e suas condições de produção é uma postura materialista.2
Se formos ao trabalho de Walter Salles chegaremos a um conjunto de interesses que dizem respeito às fraturas sociais do Brasil e como elas são vivenciadas pelos indivíduos. Essa relação não é nenhuma novidade no cinema brasileiro e tem raízes já em Humberto Mauro, cujo trabalho foi influente para o Cinema Novo e suas tensões políticas em cena. A assinatura de Salles, porém, está no trato que ele busca dar a essa relação. A herança do cinema de temática social brasileiro é incorporada por ele, mas com uma mescla de referências e técnicas cinematográficas do cinema moderno global. Nos primeiros filmes, Salles parece incorporar um ritmo que joga com as câmeras ágeis e a montagem das novas ondas europeias. O preto e branco, os closes e o realismo do curta-metragem Socorro Nobre (1995) e do longa Terra estrangeira (1995), bem como suas cargas dramáticas que ora remetem a Glauber Rocha e Leon Hirzman, ora a Godard, Fassbinder e Scorcese. O andamento e a montagem dos filmes parecem familiares em certos momentos a Nelson Pereira dos Santos, em outros, a Felini. Em Terra estrangeira e Central do Brasil (1998) e Abril despedaçado (2001), saltam à tela as influências do cinema de gênero americano, o western, o road movie, e a sensibilidade de enquadramento dos personagens de Antonioni. A experiência e a formação cosmopolita do diretor não lhe permitem se contentar em pensar o seu cinema de forma nacional, mas ele também não abre mão de tratar de Brasil. Salles é bastante marcado pela ideia de abertura que pairava nas primeiras décadas da Nova República. Ele busca enraizar-se na periferia, mas em diálogo com o centro.
Essa escolha de Walter Salles de tratar da matéria da fratura social e como ela marca as histórias individuais e subjetivas de seus personagens, que transitam entre a classe média e a pobre classe trabalhadora, é uma tentativa de pensar a partir da sua classe burguesa o problema que ela mesmo perpetua nesse território. Porém, o caminho tomado pelo diretor é o de uma elegia a um humanismo quase utópico quando olhado desde o presente. É pela sensibilidade que Salles tenta salvar a humanidade das pessoas. Sua crítica abre uma importante vereda para pensar a dialética entre a sociedade de classes e seus efeitos subjetivos e sociais – como uma lupa nas históricas cotidianas dos indivíduos –, ao mesmo tempo que também limita o problema ao âmbito da ética (ou da falta de ética) e da moral. O cinema de Salles representa as fraturas como uma acusação da falta de escrúpulos, não do lumpeproletariado ou do camponês, mas daqueles que detêm o poder político e dão de ombros para os problemas sociais. Mas a questão que seu cinema não toca é: quem mantém essa estrutura de poder? Como aponta Fernão Pessoa Ramos em Nova história do cinema brasileiro: volume 2, em Salles há um apelo à compaixão do público de classe média que leva à catarse. Não que isso seja um defeito, porém, é uma clara limitação se a exigência é a transformação dessa realidade. O público entende e se comove, mas sai com uma indignação sem alvo. De qualquer maneira, o cinema de Walter Salles não se resume às suas limitações, e seu trabalho estético e dramático, além da viabilização de outros cineastas por via de sua produtora,3 são marcos importantes para o período de Retomada do cinema brasileiro pós fim da Embrafilmes.4 O reconhecimento internacional de seus filmes abriu portas para a carreira de outras fitas brasileiras nos anos 2000 em diante. Para conhecer, debater e criticar o cinema de Walter Salles indico alguns dos seus filmes anteriores ao fenômeno Ainda estou aqui.
Notas
- Lembrando também das posições dialéticas que vão de Trotsky a Adorno, que visavam a superação da arte e da cultura burguesas sem que fosse necessário rejeitar seus melhores feitos. ↩︎
- Um texto particularmente provocativo sobre as contradições entre uma arte de ruptura e sua dependência material da sociedade burguesa é “Vanguarda e kitsch” de Clement Greenberg. ↩︎
- A Video Filmes, criada com seu irmão e documentarista João Moreira Salles, aparece nos créditos de todos os seus filmes. Para olhares atentos e acostumados com a avalanche de marcas no início dos filmes brasileiros devido aos patrocínios via leis de fomento, irão notar que a empresa dos irmãos Salles parece adotar outro modelo de captação de recursos. ↩︎
- Órgão de fomento ao cinema criado durante a ditadura militar e encerrado no governo Collor, o que levou à dramática situação do congelamento quase total da produção cinematográfica no início dos anos 1990. ↩︎
Terra estrangeira (1995),dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas

Imagem: Divulgação
Como disse a dupla de diretores certa vez, esse é um filme de dois jovens cinéfilos. Quem assiste sente esse entusiasmo nas escolhas bastante diversificadas de composição, roteiro e montagem. O longa transita (ou hesita) entre o realismo, com um pé no momento histórico de congelamento de poupanças pelo governo Collor, e o conto noir de jovens imigrantes metidos com o tráfico de joias. Esse último teor é dominante no filme, mas o gatilho da história é um acontecimento histórico. Essa ambivalência se reflete na tela com sequências que colocam em cena um contexto realista dos perrengues que jovens imigrantes enfrentam na Europa, e uma aventura criminal que me lembra muito o tom dos filmes do primeiro Godard, incluindo momentos reflexivos que abrem o universo interno de seus personagens. A colagem de referências cinéfilas marca o início de uma filmografia que vai demonstrando mais maturidade e autoria nos longas posteriores.
Central do Brasil (1998),dirigido por Walter Salles

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O drama de uma professora aposentada que complementava a renda escrevendo cartas para analfabetos na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e nunca as enviava. De consciência pesada, ela se vê enredada a um garoto que deseja conhecer o pai em Pernambuco. Esse é o tema do sucesso de público e crítica de 1998. O menino Josué (Vinícius de Oliveira) é o vetor de uma transformação moral em Dora (Fernanda Montenegro). A jornada de transformação da personagem se dá na estrada, uma metáfora que a retira do seu pobre apartamento suburbano e a coloca na grande paisagem do sertão, onde ela encontra a realidade dos seus clientes retirantes e a origem do seu novo amigo. O alto teor melodramático do filme vem principalmente da interpretação de Fernanda Montenegro, da cinematografia de Walter Carvalho e da música assinada por Antonio Pinto e Jacques Morelenbaum. Em Central do Brasil, Walter Salles encontra a forma madura da sua investigação dos afetos em meio à fratura social. A representação árida da pobreza ganha complexidade com a poética da cultura popular, permeada pela religião e pela natureza imponente do sertão. O sentimento de dever ético que move todo o filme é a irrigação humanista diante da barbárie inicial. Mesmo diante de todas as contradições que o filme coloca em cena, Salles aposta na redenção como mensagem final.
O primeiro dia (1999),dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas
Imagem: Divulgação
O longa foi encomendado pelo grupo europeu de comunicação Arte, que convidou vários diretores a produzir filmes sobre a virada do milênio. A dupla Salles e Thomas conta, então, a história de três personagens que em comum têm a certeza de que o imaginário simbólico de mudança e esperançoso que a virada para os anos 2000 suscitara na época era uma mera ilusão. O tema da violência reaparece, mas aqui como um fato social brasileiro que condena alguns indivíduos à marginalidade e só aparece para a classe média como um terrível incômodo nas suas pretensões de conforto. Enquanto João (Luiz Carlos Vasconcelos) e Francisco (Matheus Nachtergaele) enfrentam a sina da bandidagem e do sistema carcerário corrupto como destino natural do favelado, Maria (Fernanda Torres) tenta superar a crise existencial disparada pelo abandono do companheiro às vésperas da virada. O descompasso entre o peso dessas situações deixa o drama de classe média um pouco caricato, mas acaba funcionando como uma representação verossímil de como esses problemas são encarados pela sociedade brasileira. A parceria entre os dois cineastas, retomada em O primeiro dia, lembra o clima de aventura de Terra estrangeira: sequências de perseguição; planos que apostam no claro e escuro como índice do bem e do mal, da clareza e da dúvida; e posicionamentos de câmera não tão tradicionais constroem esse drama psicológico e social trágico.
Abril despedaçado (2001),dirigido por Walter Salles

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A livre adaptação do livro homônimo em português do escritor albanês Ismail Kadare buscou territorializar a trama no Brasil do início do século XX. A disputa de terras entre duas famílias rivais retrata a lei do mais forte, vigente num país cujo sistema escravocrata havia sido proibido pouco tempo antes e abandonara o campo à própria sorte, assim como os recém-libertos. O filme trabalha sobre o valor simbólico das pequenas propriedades camponesas para os sertanejos que dependiam do próprio trabalho. A terra era a honra e as duas coisas valiam a própria vida. A brutalidade e a violência da disputa são interpoladas na tela pelo desejo de liberdade, que o filme aponta como única saída para o círculo vicioso baseado na honra. Chama a atenção como o valor da liberdade se sobrepõe à derrota material. De forma ambígua, porém, deixa o questionamento sobre o que fazer com a imensidão abstrata da liberdade. As câmeras subjetivas que Salles utiliza e a cinematografia que transita entre as expressões faciais e a paisagem jogam com a dialética entre repressão e desejo, que nunca cessa de se colocar, mesmo em meio à miséria.
Linha de passe (2008),dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas
Imagem: Divulgação
“Linha de passe” é um termo tático do futebol que delimita, no campo, o espaço entre quem detém a bola e os/as companheiros/as de equipe que podem recebê-la sem interceptação de algum adversário. Walter Salles e Daniela Thomas emprestam a expressão para costurar a relação entre os cinco protagonistas. A conexão aberta entre os integrantes dessa família da periferia leste de São Paulo, porém, parece nunca se concretizar, pois há sempre um adversário por perto. Há a realidade atrapalhando os sonhos. Salles e Thomas chegam em uma espécie de crônica fílmica, em que o drama começa a se desenhar no prosaico do dia a dia, desde um ralo entupido até a disputa pelo sofá entre irmãos, e vai se adensando no dilema da sobrevivência, que cobra caro para ser garantida – cobra a dignidade de cada personagem. A montagem paralela é um recurso utilizado de maneira muito interessante, pois conta as histórias individuais das personagens de forma que o espectador é convidado a formar a linha do tempo dos acontecimentos e estabelecer por si mesmo a relação entre eles, em vez de entregar de bandeja. Novamente, o ambiente social e o íntimo das histórias são representados com muita sensibilidade e o filme toca pelo realismo sem condescendência. Para os paulistanos, porém, é preciso deixar de lado o maneirismo que aparece nas interpretações em relação às gírias e ao sotaque. Nada que o público do resto do Brasil não tenha feito quando assistia produções do eixo Rio-São Paulo com personagens de outros lugares. Em Linha de passe, a típica família em que a mulher é o arrimo ganha uma boa representação com todas as suas complexidades. Não à toa, a mãe Cleusa rendeu a Sandra Corveloni o prêmio de melhor atriz em Cannes, festival onde o filme também concorreu à Palma de Ouro.
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Diogo Dias é doutorando de filosofia na Unifesp, onde estuda teoria crítica do cinema no Brasil
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