Dênis de Moraes, meu amigo, viajou

Milton Temer, José Paulo Netto e Dênis de Moraes no final de 2024, último encontro dos três
Foto: Leila Escorsim.

Por José Paulo Netto

Decerto que lerei hoje – sábado, 8 de fevereiro – vários necrológios de Dênis de Moraes, dando notícia de seu falecimento no passado dia 6 e de sua cremação na tarde seguinte, no Cemitério do Caju. Provavelmente serão todos elogiosos e verazes: resgatarão a sua carreira de jornalista de texto límpido, a sua impecável formação acadêmica, o seu profícuo magistério na Universidade Federal Fluminense e mencionarão suas principais obras (com destaque para o seu protagonismo no campo da teoria da comunicação e do biografismo). Em suma: com certeza quase absoluta, todos lamentarão a sua morte, com ele mal entrado nos 70 anos, e dirão da imensa perda sofrida pela inteligência brasileira.

Também a mim, com a serenidade que me trouxe a idade mais avançada, surpreendeu-me a inesperada interrupção da sua jornada entre nós. E na tarde de ontem, ao despedir-me dele no crematório do Caju, forte emoção levou-me às lágrimas.

Nós nos líamos desde os anos 1980. Trocávamos saudações e críticas, aliás, poucas e raramente substantivas. Mas só nos tornamos amigos no final dos anos 1990, num divertido almoço no campus da UFRJ, em Botafogo – com a animada participação de Carlos Nelson Coutinho. Desde então, a minha relação pessoal com Dênis ganhou profundidade e se tornou algo de essencial em nossas vidas. Nosso vínculo pessoal teve, desde o início, a marca característica da amizade entre os comunistas de antigamente: um contínuo e permanente diálogo entre pares, ajuda mútua, autocríticas e projetos. Da minha relação com Dênis, devo assinalar que aprendi muito.

Neste século XXI, dois grandes amigos me deixaram só: no mesmo 2012, Aloísio Teixeira e Carlos Nelson, meus camaradas desde a segunda metade dos anos 1960. O primeiro se foi de repente; o segundo teve uma partida mais demorada e dolorosa. Como driblar golpes como esses, sem o auxílio cômodo de uma crença religiosa noutro mundo?

Há bem mais de cinquenta anos, percorrendo a poesia de César Vallejo, o notável e esquecido peruano, guardei a lição: Hay golpes en la vida, yo lo sé! Mas esta sabedoria nunca me consolou. Já velho, porém, encontrei uma solução pessoal, que reconheço artificiosa: imagino que os amigos que partem e me deixam aqui, quase solitário numa esquina da vida, apenas empreendem uma longa viagem, uma viagem sem volta. E mesmo privado das suas presenças físicas, nossa interlocução prossegue. Assim, continuo discutindo com Aloísio as suas páginas sobre os Utópicos, heréticos e malditos e debatendo com Carlos Nelson a sua tese da compatibilidade entre Gramsci e Lukács. São conversas produtivas e sempre renovadas – avaliamos nossas ilusões e equívocos pretéritos, nossas mínimas vitórias e vários dos nossos fracassos, e nos prometemos continuar estudando para dar à frente passos mais firmes. E são sobretudo tertúlias recheadas de sorrisos: preservamos e afinamos nossa ironia para com o mundo e para conosco mesmos.

Assim será, para mim, a viagem iniciada por Dênis neste 6 de fevereiro. Continuarei a dizer a ele da minha parca compreensão da sua teoria da comunicação; prosseguiremos discutindo as alternativas para a tradição marxista nos próximos tempos, os dramas e os ganhos do socialismo a que entregamos as nossas juventude e madurez e a nossa esperança pelo futuro; continuaremos, intransigentes, fieis à nossa adesão às ideias comunistas. Falamos de tudo isso, e mais alguma coisa, no último encontro pessoal que tivemos, em minha casa, em novembro passado – nós dois, mais Leila e Milton Temer. 

Dênis e eu, apesar da distância física que agora nos separa, daremos seguimento ao nosso essencial diálogo. Tentaremos enfrentar juntos os problemas que a realidade nos apresenta, falaremos dos projetos a concretizar e, como sempre, haveremos de rir muito. Terei outras ocasiões de assistir ao respeitado acadêmico alongar-se, uma taça de bom espumante entre os dedos, em digressões – acreditem! – sobre astrologia e horóscopos (o que fazia as delícias de Leila). Era de ver aquele culto e sofisticado lorde inglês dissecando os enigmas da especulação mágico-popular…

Prosseguiremos, Dênis. Vamos retomar nossas ideias sobre os brasileiros de quem você elaborou biografias exemplares (em especial a de Graciliano, aquela de que mais gosto). Voltaremos a debater a sua contribuição ao “imaginário vigiado” e a relevância deste último Sartre e a imprensa, que me encantou. E nunca diremos a palavra final sobre A esquerda e o golpe de 1964. De minha parte, ouvirei com mais atenção sobretudo os seus reparos às minhas exposições escritas – que você recomendava fossem mais fluentes e mais leves. A verdade, saibam todos, é que o meu amigo Dênis de Moraes não morreu – como Aloísio Teixeira e Carlos Nelson Coutinho, ele apenas viajou.


O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos, de Dênis de Moraes
A vida de Graciliano Ramos contada por seu melhor biógrafo. Uma edição com acréscimos, incluindo um caderno iconográfico inédito e entrevista reveladora. Com pesquisa minuciosa, reconstitui a vida complexa de Graciliano, entrelaçando momentos cruciais com o cenário político e social do Brasil.

Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação, de Dênis de Moraes, Ignacio Ramonet e Pascual Serrano
Três destacados pensadores se unem para uma análise sobre o poder da mídia global. Discutem desde a concentração monopólica até estratégias de comercialização, destacando a importância da democratização da informação na América Latina. Para compreender os desafios contemporâneos da comunicação.

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José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais. Professor Emérito da UFRJ e comunista, é amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács no Brasil, coordenando a “Biblioteca Lukács“, da Boitempo. É autor, entre outros, de Karl Marx: uma biografia (Boitempo, 2020) e Lukács, uma introdução (Boitempo, 2023), além de organizador de Da erótica (Boitempo, 2022), antologia de poemas de Bocage, História e consciência de classe, cem anos depois (Boitempo, 2023) e do guia de introdução ao marxismo Curso Livre Marx-Engels: a criação destruidora (Boitempo, Carta Maior, 2015).

2 comentários em Dênis de Moraes, meu amigo, viajou

  1. Hoje, 16 de agosto de 2025, senti muita saudade do Denis, meu querido professor. Ele me apoiou em um momento decisivo na minha vida acadêmica e me fez sentir que eu poderia (sim!) encerrar um ciclo complicado na vida. Ele acreditou no meu potencial, quando nem eu mesma acreditava. Foi um presente e uma honra tê-lo conhecido. Que esteja sempre bem em sua viagem. Na minha imaginação, a gente sempre vai se encontrar para um café.

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