Breque dos apps: a ascensão do novo proletariado de serviços

Foto: Paulo Pinto/ Agência Brasil

Por Marco Gonsales

Nos dias 31 de março e 1º de abril, entregadores e entregadoras de pelo menos uma centena de cidades brasileiras brecaram suas motos e bicicletas. Juntos, realizaram o maior evento paredista nacional da categoria, desde o primeiro Breque dos Apps de 2020, consolidando o movimento dos entregadores como uma das principais forças organizadas da classe trabalhadora brasileira.

No primeiro dia da paralisação, em São Paulo, aproximadamente 2 mil entregadores se reuniram, por volta das 9 horas, no estacionamento do estádio do Pacaembu. Por volta das 11 horas, o grupo partiu em direção à Avenida Paulista e, de lá, seguiu em protesto até a sede do iFood, em Osasco. Em frente ao portão principal da empresa, os trabalhadores exigiram a presença dos diretores, que se recusaram a dialogar diretamente com os manifestantes. Apenas nove entregadores foram autorizados a entrar na empresa e, após uma breve reunião, saíram com a resposta de que suas reivindicações não seriam atendidas. Por muito pouco, a categoria enfurecida não ocupou a empresa.

Entregadores na sede do Ifood em 31 de março de 2025. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

No segundo dia de manifestações, após a negativa do Ifood em atender suas reivindicações, os entregadores radicalizaram o movimento e bloquearam a saída das refeições em diversos estabelecimentos e shoppings, tanto do centro expandido, quanto das zonas periféricas da grande São Paulo (MONCAU, 2025). Apesar das empresas dizerem que suas operações não foram abaladas pela greve, consumidores de diversas localidades do país relataram, em suas redes sociais, instabilidade dos aplicativos e a demora para a realização dos serviços.

A principal reivindicação do Breque foi o aumento da “taxa mínima de entrega” para R$ 10,00 e um adicional de R$ 2,50 por quilometro rodado, além da limitação do raio de ação dos ciclistas para 3 quilômetros. Apesar do seu caráter imediatista, tem sido através de pautas como essas que categoria tem conseguido articular o movimento em âmbito nacional. Foi assim no primeiro Breque de 2020, nas paralisações das pequenas e medias cidades do interior do país, em 2021, no Breque de 2023 e, agora, na recente paralisação nacional da categoria. No entanto, essas não são as únicas pautas do movimento.

De maneira geral, podemos dividir a categoria em três grupos. O primeiro engloba aqueles trabalhadores que prioritariamente defendem mudanças imediatas e pontuais, como melhores taxas de entrega e o fim dos pedidos duplos ou triplos. O segundo inclui os que entendem que as pautas devem exigir das plataformas o cumprimento de suas promessas de autonomia e flexibilidade das relações. Por fim, há aqueles que priorizam o reconhecimento da condição de assalariamento e, consequentemente, a formalização do vínculo empregatício como principal demanda da categoria, além de exigirem transparência à gestão algorítmica.

Um marco do recente Breque foi o engajamento maciço de lideranças e associações que, antes, hesitavam em confrontar as empresas diretamente, priorizando as negociações por uma “real autonomia”. Além disso, em nenhum outro protesto organizado pela categoria eu tinha presenciado tantos trabalhadores entoando, em seus discursos e entrevistas, palavras e expressões como “escravidão moderna”, “precarização”, “exploração” e “superexploração”, ou mesmo frases como “sem entregador não existe aplicativo”, “sem a gente não tem Ifood“. Resultado do acirramento das contradições do setor e da evolução da organização da categoria, o que tem proporcionado condições favoráveis à superação das divergências internas, favorecendo a união e conscientização da classe.

Fato que corrobora com essa percepção foi a fundação, no final de 2022, da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos (ANEA), a primeira “federação” de associações, coletivos e sindicatos da categoria, que, em sua carta de fundação, defendeu os direitos previstos na legislação protetora do trabalho para toda a categoria. Nos últimos anos, a ANEA tem sido o principal eixo de articulação dos entregadores, impulsionando ações decisivas, como: a pressão sobre o governo Lula, antes mesmo de sua posse; a integração e posterior saída da mesa de negociação promovida pelo governo federal em 2023; a participação e os relatos de suas principais lideranças na audiência pública sobre o vínculo empregatício dos motoristas e entregadores uberizados, promovida pelo STF, em dezembro de 2024; e, especialmente, a articulação da recente Paralisação Nacional, que diferentemente do caráter mais espontâneo do primeiro Breque, foi resultado de um processo muito mais amplo de organização.

De modo geral, o que temos observado — tanto no Brasil quanto em outros países — é que os setores mais organizados dos trabalhadores uberizados, que inicialmente reivindicavam a redução das taxas cobradas pelas plataformas ou uma “real autonomia”, passam a ampliar sua compreensão à medida que acumulam experiência no trabalho e na prática da luta. Com o tempo, percebem, contrariando o discurso das empresas, que são, na realidade, trabalhadores subordinados. A mesma dinâmica, em alguns locais, tem avançado para reivindicações mais específicas, como a do controle algorítmico. Isso envolve questionar quais dados são coletados dos trabalhadores, como os aspectos da gestão do trabalho são manipulados, e com base em quais critérios as decisões automatizadas são tomadas, entre outros aspectos (LAAN; GONSALES, 2023). Essa evolução das demandas reflete um amadurecimento da luta desses trabalhadores, que passam a buscar não apenas melhorias imediatas, mas também transparência e controle sobre as condições e os mecanismos que regem seu trabalho no caminho de uma apreensão mais totalizante da realidade.

Ao ampliar a capacidade de gestão e controle dos trabalhadores e rebaixar o valor da sua força de trabalho, a uberização — trocando em miúdos, a gestão algorítmica do trabalho combinada com um tipo de exploração que “precariza o precarizado” — tem favorecido a dinâmica de organização/conscientização dos trabalhadores, potencializando a classidade do novo proletariado de serviços (ANTUNES, 2018). Outrora motoboys e motofretistas, autônomos e empregados de pequenas empresas, agora subordinados ao grande capital (a empresas transnacionais como a Uber e o Ifood), entregadores e entregadoras se integram a scène principale da luta de classes (GONSALES, 2023). Um movimento de massas que ascende à auto-organização e, nesse sentido, é incomparável com qualquer outro movimento da categoria pelo mundo.

* Contribuiu para a elaboração deste texto o entregador e geógrafo Renato Assad, integrante do coletivo Entregadores Unidos pela Base e autor do livro Entregadores de aplicativos: a luta de um novo proletariado.

Referências

ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na Era Digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

GONSALES, M. Breque dos apps: as morfologias da luta dos(as) entregadores(as) por aplicativos. In: FESTI, Ricardo (org.). A tragédia de Sísifo: trabalho, capital e suas crises no século XXI. Jundiai: Paco, 2023.

CARTA da Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos (ANEA) sobre regulação das plataformas digitais. ANEA – Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos, 2023. Disponível em: https://anea.net.br/wp-content/uploads/2024/07/alianca-1.pdf Acesso em: 12 dez. 2024.

LAAN, M. v. d.; GONSALES, M. No meio do caminho: a legitimação do trabalho uberizado no Brasil. Margem Esquerda, v. 41, p. 107-121, 2023.

MONCAU, G. Em greve nacional, entregadores brecam saída de pedidos em shoppings na capital paulista. Brasil de Fato, 1 abr. 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/04/01/em-greve-nacional-entregadores-brecam-saida-de-pedidos-em-shoppings-na-capital-paulista/ Acesso em: 2 abr. 2025.


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Marco Gonsales é pesquisador de pós-doutorado do IFCH-Unicamp e integrante do grupo de pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses. Pela Boitempo, publicou capítulos nos livros Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais (2023) e Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0 (2020), ambos organizados por Ricardo Antunes, além do artigo “No meio do caminho: a legitimação do trabalho uberizado no Brasil”, escrito com Murilo Van der Laam, na Margem Esquerda #41.

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