Nem todo homem, mas… no “Oeste outra vez”

Foto: Divulgação.
Por Diogo Dias
SEM SPOILER
Certa vez, li um trabalho de um colega (ainda em fase de preparação) em que ele transcorria sobre como um título pode deslocar as significações de uma obra de arte, e logo me vieram à memória alguns casos em que vivi essa influência diretamente. Na arte contemporânea, o título pode ajudar o entendimento da proposta do artista (se houver) ou causar um estranhamento igualmente proposital, em que a fruição dá lugar a outras possibilidades de experiências estéticas. No cinema isso também acontece.
Para os espectadores habituados aos faroestes, o título Oeste outra vez é uma citação que estabelece, de saída, uma relação entre o novo longa-metragem de Erico Rassi e a tradição do velho gênero. Trata-se de uma referência ao clássico Era uma vez no oeste (1968), de Sergio Leone. Para as demais pessoas, contudo, pode ficar a pergunta: “por que outra vez?” Vou tentar responder a essa pergunta a partir de outro ponto de partida que não o intertexto entre as obras. Pois o filme brasileiro retrabalha o tema da violência, sempre presente no gênero western, reterritorializando as suas convenções em um lugar completamente diferente das paisagens filmadas por Leone ou John Ford (diretor de No tempo das diligências, 1939 e Rastros de Ódio, 1956), sem deixar de situá-las outra vez no Oeste. Mais precisamente, no Centro-Oeste, em pleno cerrado goiano.
Os planos abertos, os cenários inóspitos, os silêncios, as pistolas e a vingança estão lá e cá. Mas a Chapada dos Veadeiros de Rassi abriga homens de outros tipos, que não guardam nenhum resquício do heroísmo que se costumou atribuir aos pioneiros de uma terra por construir no oeste norte-americano — uma terra, por isso mesmo, sem lei. E são esses novos personagens, situados numa decadência sem ápice, que dão ao longa brasileiro o seu frescor.

Foto: Divulgação
A única personagem mulher em tela, pivô de uma rivalidade entre dois homens, se afasta do conflito ainda nos primeiros minutos. Somos deixados sozinhos com esses sujeitos que fazem de tudo para fugir da sua complexidade e se refugiar numa imagem de masculinidade, forjada em uma sociedade onde a ausência da lei e da ordem os leva a reproduzir a violência do homem hobbesiano em estado de natureza. Um suposto amor pelas mulheres é a desculpa que os personagens — principais e coadjuvantes — contam para si e entre si, a fim de justificar seu comportamento brutal, quase suicida, que não poderia ser explicado nem pelo romantismo mais radical.
Há outros fatores em jogo. Há a vida crua, representada pelas casas sem reboco, sem cuidado, sem limpeza; pelos automóveis caindo aos pedaços; pelo tempo livre inteiramente ocupado pelo álcool; pela sensibilidade reprimida, que encontra na embriaguez e nas letras do brega de Nelson Ned e Benedito Seviero — que inclusive compõem a trilha sonora — um caminho estreito de sublimação do sofrimento. Sofrimento que aqueles homens parecem incapazes de elaborar.
A trava na linguagem, que faz com que os diálogos circulares se repitam, nos causa angústia e só encontra saída (para nós, não para os personagens) no chiste. O humor e a repetição são usados por Rassi para que o filme continue em seu ritmo de perseguição lenta e desastrada pelas belas paisagens do cerrado, sem que o público seja tragado pela melancolia dos personagens.
Se no caso dos cowboys norte-americanos a dureza dos personagens estava ligada à construção da masculinidade como sinônimo de força, capacidade de conquista e poder, para os velhos peões, pistoleiros, capangas e trabalhadores no limite da miséria essa brutalidade é o que denuncia a incapacidade de se livrar de um ciclo vicioso de opressão do qual são ao mesmo tempo algozes e vítimas. Algozes das mulheres e crianças que sofrem com o alcoolismo, abandono e violência. Vítimas de um sistema que os impede de desenvolver uma subjetividade suficientemente amadurecida para lidar com conflitos, perdas e rompimentos sem apelar para duelos mortais. As dores que o filme move irão desembocar em um clímax abafado, reprimido como os homens da aventura.

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Aliás, o som do filme é um elemento que constrói muito bem esse clima contido. Os tiros, os murros e os silêncios que precedem as ações não reproduzem os alaridos do faroeste norte-americano, mas são abafados, secos, retirando da violência seu glamour e mostrando como os impulsos mais intensos terminam num instante banal para aqueles homens brutalizados pela sua situação de classe, pelos valores e práticas patriarcais, pela castração complexa que essa combinação perversa faz.
Como bem comentou a produtora Cristiane Miotto na pré-estreia do filme em São Paulo, os tipos do filme nos fazem lembrar de algum homem de nossas vidas. Bem que gostaríamos que as caracterizações dos personagens fossem apenas invenções exageradas de ficção, porém, dentre as dezenas de homens representados no faroeste goiano, acharemos seguramente algum tipo que faz parte de nossas vidas. Talvez nós mesmos.
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Diogo Dias é doutorando de filosofia na Unifesp, onde estuda teoria crítica do cinema no Brasil
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