Qual filosofia para Alfred Sohn-Rethel?

Por Gabriel Tupinambá

Celebramos hoje, 6 de abril, o aniversário da morte de Alfred Sohn-Rethel, importante intelectual marxista cujas contribuições ficaram esquecidas por muito tempo, mesmo tendo influenciado autores tão diversos quanto Theodor Adorno, Moishe Postone, Slavoj Žižek e Giorgio Agamben. Não poderia haver melhor forma de celebrar seu trabalho do que através da publicação em português de sua principal obra, Trabalho intelectual e manual, recentemente editada pela Boitempo. O que eu gostaria de propor aqui, como parte desse momento de celebração, é uma pequena provocação: apesar de ter sido claramente um autor do seu tempo e lugar – interlocutor da Escola de Frankfurt e de Benjamin e das discussões filosóficas do “marxismo ocidental” –, a obra de Sohn-Rethel inaugura, potencialmente, um outro caminho filosófico para o marxismo. É uma obra imperfeita, certamente, mas que aponta para o futuro, mais do que um monumento de discussões teóricas já encerradas.

Evidentemente, não posso fazer mais do que apresentar aqui uma rápida petição por essa leitura alternativa de sua obra. Por isso irei me ater a apenas dois pontos centrais.

O primeiro diz respeito ao objeto da teoria de Sohn-Rethel. É notório que Trabalho intelectual e manual começa com uma longa meditação sobre a famosa frase de Marx, retirada do prefácio de Para a crítica da economia política, “o ser social determina a consciência”. Os primeiros capítulos propõem uma avaliação não só da importância desse princípio para o materialismo histórico, mas também dos limites da teoria marxista em compreender e conceitualizar o que tal formulação implica. O ganho mais imediato da proposição de Marx, a dimensão que já foi muito bem assimilada pelo marxismo, é apontar para uma inversão entre as condições de produção material da vida social e as formas de consciência que emergem em uma dada sociedade. Isto é, não é porque as pessoas pensam de uma certa maneira que organizam a sociedade de uma dada forma, seguindo esses preceitos e valores – ao invés, é a forma de organização social, os meios pelos quais garantimos a existência material da humanidade, que precedem e determinam as formas de pensamento de uma época. Essa inversão, no entanto, por mais fundamental que seja para o materialismo histórico, não explicita exatamente que tipo de determinação estaria em jogo aqui: o que, em um dado modo de produção, promoveria essa mudança nas formas de consciência?

Nessa mesma passagem do prefácio, Marx oferece duas vias de entrada ao problema: pela base, ou pela superestrutura, isto é, pelo “revolucionamento material nas condições econômicas de produção”, ou pelas “formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas”. São duas vias diferentes pois Marx distingue, aqui, as ciências naturais, implicadas nas transformações mais fundamentais das forças produtivas de uma sociedade, das demais formas de conhecimento e consciência, que ele associa à ideologia. Essa distinção é crucial, pois a opção de Sohn-Rethel diante dela é bastante singular. Por mais que Marx fale da determinação da consciência pelo ser social, o que sugere um foco mais tradicional nas formas ideológicas de uma dada época, Sohn-Rethel opta por centrar sua análise na emergência das categorias fundamentais que balizam o conhecimento científico. É claro que nem Marx nem Sohn-Rethel ignoravam que essas duas dimensões se misturam, mas há uma diferença importante entre elas.

Essa diferença é tematizada em Trabalho intelectual e manual a partir da perplexidade kantiana com a ciência moderna. Toda a construção de Kant na Crítica da razão pura é, afinal, motivada pela necessidade de compreender como é possível que exista um conhecimento que não é mera abstração da experiência imediata, um conhecimento que consegue romper com os limites da nossa experiência – o que leva Kant a conceitualizar a possibilidade do conhecimento “sintético a priori”, isto é, de um conhecimento novo, deduzido a partir de outra coisa que não os nossos sentidos e nossa perspectiva situada. A importância de Kant para Sohn-Rethel é muitas vezes exagerada pelos comentadores – Sohn-Rethel de maneira alguma depende das categorias kantianas para propor sua análise –, mas é de grande valor didático transpor o assombro de Kant com as ciências para o quadro do materialismo histórico. Afinal, como podemos explicar, a partir de uma teoria materialista, o surgimento de categorias abstratas, irredutíveis à experiência, e que possuem verdadeira eficácia?

Quando falamos em teoria da ideologia, o problema é um pouco diferente, pois o que está em jogo é a produção de formas sociais, filosóficas e espirituais adequadas a um tempo histórico e uma dada situação social: maneiras de concebermos a nós mesmos, o sentido de nossas ações e do mundo à nossa volta, que são enraizadas em um modo de produção que confirma (pelo menos em parte) a validade dessas mesmas formas. As formas de consciência de uma sociedade feudal pertencem a essa sociedade e não sobrevivem, enquanto formas de consciência social – isto é, eficazes como orientações da vida prática coletiva –, às transformações históricas que trazem à baila o capitalismo. O mesmo não se dá com o conhecimento científico: mesmo surgindo em épocas e contextos sociais específicos, a validade de seus resultados permanece estranhamente alheia às transformações históricas. Enquanto as formas políticas gregas perdem sua relevância real fora de seu contexto escravocrata e comercial específico, o “teorema de Pitágoras” – que sabemos, na verdade, ter sido descoberto independentemente uma meia dúzia de vezes ao longo dos últimos 3 mil anos por sociedades muito diferentes – continua disponível para nós como uma forma atual de conhecimento. Por mais que compreender o funcionamento da ideologia seja uma tarefa crucial, o verdadeiro “calcanhar de Aquiles” do materialismo histórico não é explicar as práticas e formas subjetivas presas a uma época, mas aquelas que, dependendo de condições históricas específicas para surgir, ainda assim são capazes de algum poder trans-histórico.

Uma estratégia comum para lidar com o problema do conhecimento é tratá-lo como um caso limite da teoria da ideologia, isto é, começar por explicar o mais fácil – que a visão de mundo e a forma da experiência social de uma época depende da sua base material, da qual seria um reflexo – para então explicar o surgimento da ciência e seu modo de operar, conceitualmente e experimentalmente. O problema desse tipo de abordagem é que ele impõe à compreensão da ciência um enquadramento conceitual construído para explicar outra coisa. Por exemplo, a teoria da ideologia de Althusser ou de Žižek, ou a teoria do fetichismo de Robert Kurz e outros, foram elaboradas para explicar a reprodução da sociedade capitalista e o modo como as práticas sociais, mesmo quando orientadas por outras preocupações, contribuem para a produção de sujeitos que transformam a determinação econômica do capitalismo em uma expressão “livre” de seus desejos e formas de agir. A formação do indivíduo na escola e na família, o consumo de produtos culturais ditos “subversivos”, a prática de pequenas resistências políticas ineficazes – mesmo que tudo isso em certo sentido aponte “para fora” da lógica econômica das mercadorias, em termos práticos o que ocorre é uma subsunção cada vez maior de todas as esferas da vida aos ditames do poder abstrato do valor e do capital. Como Žižek gosta de repetir, em nenhum lugar estamos mais dentro da ideologia do capitalismo tardio do que nas situações em que acreditamos estar além de seu alcance. Ora, essa não é a dialética do conhecimento científico: certamente formulado por pessoas atravessadas e formadas pela ideologia do seu tempo, o conhecimento sobre a relação entre proporções extensivas – seja na forma de cordas para medir áreas; seja como lista de relações algébricas para contemplação de padrões transcendentais; seja como exemplo particular da coerência interna de geometrias não-euclideanas, fundamental para a teoria da relatividade – está parcialmente fora de seu tempo mesmo quando parece uma perfeita expressão dessa época particular.

Explicar essa disposição trans-histórica a partir da teoria da ideologia – onde o trans-histórico é justamente a máscara do que é mais particular e historicamente determinado – leva a muitos impasses insolúveis. O principal deles é que a teoria da ideologia está interessada, acima de tudo, na consciência enquanto modo de adequação de um indivíduo à sociedade em que vive, seu interesse político é compreender a consciência como obstáculo para a transformação revolucionária, uma dimensão da vida social e da individualidade que resiste a conceber o mundo como historicamente determinado e, portanto, passível de mudanças coletivas radicais. Por conta disso, a teoria da ideologia é, acima de tudo, um dispositivo crítico: mesmo quando não se atém à ideia de uma “falsa consciência” a ser esclarecida, ainda assim trata o campo da consciência como o espaço de expressão de forças e formas econômicas mais fundamentais. Uma teoria materialista do conhecimento, por outro lado, mesmo se também interessada no modo como a base econômica determina a consciência e suas categorias, não poderia estar satisfeita em revelar a dependência do pensamento abstrato em condições concretas e sociais. Em outras palavras, não poderia ser apenas um empreendimento crítico, mas precisa ainda explicar a potência dessas abstrações, sua capacidade de se desgarrar da experiência social da qual nasce.

Uma rota alternativa, tomada por marxistas ilustres como Lênin e depois Lukács foi tentar derivar da luta de classes a diferença entre essas duas formas de construção da consciência. Afinal, na citação de Marx que mencionamos, a ciência natural está atrelada às forças produtivas, ou seja, à experiência de transformação concreta da realidade pelo trabalho, enquanto as demais formas de consciência ligam-se à superestrutura, isto é, a todas as práticas que ajudam a consolidar as relações de produção capitalistas. O conhecimento científico seria uma expressão da experiência do trabalho concreto, necessário em todas as épocas e responsável pelo avanço tecnológico, enquanto o conhecimento ideológico estaria atrelado às formas abstratas e historicamente específicas do capitalismo. Haveria, portanto, uma afinidade entre a experiência proletária e o desenvolvimento da ciência, enquanto a ideologia capitalista seria uma expressão da separação dessa experiência, propiciada pela dominação da burguesia. Por mais que essa formulação tenha o mérito de separar a teoria do conhecimento da crítica ideológica em algum grau, de certa maneira preserva a experiência no cerne da construção conceitual – razão pela qual Sohn-Rethel, para propor uma terceira forma de análise, recorre a Kant e ao juízo sintético a priori. Como ele mesmo diz:

“Concordamos com Kant em que os princípios básicos do conhecimento das ciências quantificadas da natureza não são dedutíveis das capacidades físicas e fisiológicas, aliás, manuais, dos indivíduos. As ciências exatas da natureza pertencem aos recursos de uma produção que definitivamente abandonou a observância dos limites individuais da produção pré-capitalista.” (p.74)

Reconhecer esse “salto” para fora da experiência, crucial na formulação científica – mesmo muito antes da modernidade europeia, como podemos ver na matemática indiana, com sua adoção do número zero, por exemplo – é o ponto crucial da proposta de Sohn-Rethel, o que constitui efetivamente o objeto de sua teoria: “como é possível um conhecimento seguro da natureza a partir de fontes que não sejam aquelas do trabalho manual?” (p.64).

Para muitos marxistas, partir do problema do conhecimento para então abrir espaço para uma teoria da ideologia pode ser contraintuitivo. Sugere o perigo de um retorno do idealismo, pois poderíamos tratar como trans-históricas muitas categorias e ideias que surgem em um contexto particular e servem a um propósito específico dentro de uma dada sociedade. Mas o que está em jogo aqui é, na verdade, outra coisa – uma estratégia que encontramos toda vez que uma ruptura de paradigma conceitual é realmente conquistada: a transformação de um contraexemplo ou anomalia na base de uma reconfiguração total dos conceitos e modelos, de modo que tal caso excepcional (no caso, o conhecimento científico) se torna explicável, e aquilo que já compreendemos (no caso, a crítica da ideologia) se torna ainda mais bem fundamentado. Isso implica, sim, em uma transformação conceitual e filosófica – e retornaremos a esse ponto em breve – mas não se trata de idealismo. Antes, diz respeito a uma reconceitualização do escopo do materialismo, uma “ampliação da teoria marxista” (p.21), como diz Sohn-Rethel.

O que essa expansão conceitual revela, na verdade, é que a própria centralidade da experiência do trabalho manual na epistemologia marxista é ela mesma um resquício fetichista, um ponto trans-histórico inexplicável do qual dependemos para pensar a diferença entre conhecimento e ideologia na sociedade capitalista – uma sociedade cuja forma de consciência é justamente determinada pela divisão entre trabalho manual e intelectual. Essa premissa – derivada das relações de produção concretas na base econômica da nossa sociedade – impede que tratemos o próprio trabalho concreto como já condicionado por categorias e formas sociais particulares, isto é, como uma prática historicamente determinada, e impede também o avanço da teoria materialista do conhecimento, pois torna toda abstração um problema do trabalho intelectual e, portanto, uma característica “nativa” da vida burguesa, em oposição à realidade dos trabalhadores.

Dando um passo atrás, anterior ao trabalho manual como forma de experiência trans-histórica, Sohn-Rethel curiosamente se aproxima e antecipa toda uma nova leitura da obra de Marx que se tornou popular nos últimos trinta ou quarenta anos, e que evita tratar a contradição central entre trabalho e capital como se apenas o capital estivesse condicionado pela forma do valor e da mercadoria. A própria realidade do trabalho concreto, em sua experiência imediata na produção, mesmo quando realizada de forma autônoma ou autogerida, é conformada pela dominação abstrata da mercadoria e, portanto, não oferece uma experiência à parte dos ditames do fetichismo, da ideologia e da “compulsão muda” do dinheiro. A teoria do conhecimento de Sohn-Rethel, que extrapola a análise da mercadoria no primeiro volume de O capital para pensar a forma social como processo de abstração real, é, portanto, compatível não apenas com a crítica contemporânea do trabalho como com a crítica da ideologia construída a partir dessa nova leitura de Marx.

Mesmo sendo possível reconhecer similaridades – e redes de influência –, se preserva, no entanto, uma tensão importante entre a teoria de Sohn-Rethel e a tradição da teoria crítica – de Adorno a Kurz e Roswitha Scholz. Isso porque, mesmo concordando com o descentramento do trabalho manual em suas análises, e concordando que existe um efeito mais direto do mundo do trabalho na sociedade como um todo, nenhum desses autores e autoras tentou efetivamente produzir uma teoria do conhecimento comprometida com a capacidade das abstrações de efetivamente sobrepor seu tempo histórico. Os partidários da “razão instrumental”, no geral, achatam ciência e tecnologia, e confundem essa disponibilidade trans-histórica das abstrações científicas com a história moderna do progresso. E ao criticar, corretamente, a tecnologia capitalista e o progressismo, jogam fora o problema central do qual Sohn-Rethel tentou dar conta. A correção de curso que alguns outros autores propõem – o aceleracionismo, por exemplo – não faz mais do que inverter o sinal desse mesmo achatamento, sugerindo que, se as abstrações científicas possuem esse poder, então devemos simplesmente aderir ao progressismo moderno e ao elogio da tecnologia como forma de expansão da racionalidade e das capacidades coletivas humanas. Nenhuma dessas duas vias lida realmente com a questão de Sohn-Rethel: de onde poderia vir, para uma teoria materialista, o acesso a formas de conhecimento irredutíveis à experiência social?

Isso nos traz ao segundo ponto crucial da teoria de Sohn-Rethel, que é o modo muito particular como ele constrói sua resposta para essa questão. A primeira parte de sua estratégia é centrada em defender um novo conceito de abstração para o materialismo histórico, o conceito de “abstração real”. Trata-se de um tipo de abstração que “não é um produto mental, nem tem sua origem no pensamento do homem, e sim em suas ações” (p.53). Alguns comentadores de Trabalho intelectual e manual tendem a compreender a abstração real como uma espécie de “ficção eficaz”, um pouco como o filósofo kantiano Hans Vaihinger explicava o funcionamento de práticas normativas: agimos “como se” os objetos não tivessem outras propriedades a não ser aquelas que os tornam trocáveis como mercadorias. Mas o que Sohn-Rethel está propondo é algo diferente: não se trata de uma crença dos portadores de mercadoria, um critério normativo que seguimos nessa prática, mas de um tipo de indiferenciação, de esquecimento ou separação das propriedades qualitativas dos objetos, que é efetuado pela própria ação, independentemente do que pensamos ou acreditamos. A divisão que ele propõe não é entre os indivíduos concretos e esses mesmos indivíduos enquanto agentes da troca, mas entre as pessoas que trocam e a organização real do processo de troca de mercadorias – uma divisão entre indivíduos e uma dimensão coletiva de propriedades alheias e externas a esses indivíduos. O conceito de abstração real inaugura, assim, essa nova via analítica que Sohn-Rethel quer propor, reconhecendo a existência das abstrações antes mesmo da formação da consciência social – e, portanto, em um espaço mais próximo da prática econômica, sem que isso implique em uma fetichização do trabalho manual como fonte de todo conhecimento.

A ideia de que existem processos de abstração que não são mentais, que acontecem no nível da ação coletiva humana, nos situa aquém da divisão entre trabalho manual e intelectual, em uma espécie de curto-circuito: há algo na prática social irrefletida que funciona como “uma oficina de formação dos conceitos” (p.50), e é apenas a posteriori (uma vez apreendidas como categorias do pensamento puro, sem conexão com a experiência laboral) que a divisão entre trabalho intelectual e manual se consolidaria. Aqui vale a pena mencionar que o foco de Sohn-Rethel no processo de troca – muitas vezes criticado por implicar uma visão “circulacionista” da lógica do valor, centrada na troca e não na produção – também deve ser compreendido como um passo atrás, e não uma opção dentro do dualismo já estabelecido entre produção e troca de mercadorias. A preferência por analisar a lógica das abstrações reais em jogo na troca mercantil em uma sociedade como a grega não decorre apenas da possibilidade de acompanhar a gênese simultânea da moeda cunhada na Jônia e do pensamento filosófico pré-socrático, é também uma posição histórica que nos coloca antes da consolidação da sociedade capitalista, onde a troca mercantil não havia se tornado tão enraizada na vida social a ponto da produção e o trabalho serem eles mesmos modos de expressão do capital, do dinheiro que quer se transformar em mais dinheiro através da venda de mercadorias. Nesse contexto histórico, “troca” significa algo diferente do que significa em uma sociedade totalmente subsumida pelo valor – estamos em um laboratório em que a forma geral da abstração real mercantil pode ser analisada, antes de entrarmos nos labirintos da discussão entre centralidade da produção ou da circulação.

A importância do conceito de abstração real não está ligada, portanto, exclusivamente à troca – e Sohn-Rethel até mesmo antecipa as transformações que esse processo de abstração atravessa quando toda a produção da vida é informada por essa mesma operação (ver p.89-90). É claro que a visualização dessa operação e seu funcionamento são facilitados pela distinção qualitativa entre as formas de produção no mundo grego e a atuação dos proprietários de mercadorias no mercado – fica muito mais claro como o que conta, o que faz diferença nos objetos e trabalhos, se altera de uma esfera para a outra. Mas nada impede a generalização do conceito de abstração real para o processo de trabalho no capitalismo, onde o processo de transformação da matéria é ele mesmo um processo de abstração, diferenciação e indiferenciação do que importa e o que não importa nesse material e nos objetos que são produzidos. O essencial mesmo da abstração real é a ideia de que as interações humanas contêm um elemento não-experimentável pelos atores envolvidos – formas que excedem os atores formadores, por assim dizer. É realmente o primeiro trunfo de Sohn-Rethel na estratégia de elaborar uma teoria materialista do conhecimento, capaz de exceder a experiência: há algo na organização social que pode escapar aos humanos; que organiza e apresenta propriedades e dinâmicas que têm origem histórica e materialista, mas não são redutíveis à experiência humana dessa mesma história material.

Muitos comentários da obra de Sohn-Rethel se detêm quase exclusivamente sobre esse conceito. Outros, avançam um pouco mais, mas se contentam em explorar os paralelismos que a abstração real autoriza entre “forma do espírito e forma da sociedade” (p.49). Discussões sobre o verdadeiro local de surgimento da moeda cunhada, sobre a economia política medieval europeia e os avanços do pensamento científico (estudo esse realizado por um precursor dos estudos em Sohn-Rethel no Brasil, Cesare Giuseppe Galvan), ou ainda sobre transformações na economia e seus efeitos na subjetividade contemporânea – encontramos muitos usos da obra sohn-retheliana motivados pela analogia entre formas econômicas e formas científicas e sociais. Chamo isso de “analogia”, pois o método que utilizam é bastante contrastante com o segundo passo da estratégia de Sohn-Rethel em Trabalho intelectual e manual.

Caso a abstração real simplesmente oferecesse uma teoria materialista de formas que operam na vida econômica de maneira independente e anterior à consciência dos atores sociais, sobraria ainda a pergunta de como é que nos tornamos cientes dessas abstrações – como passamos da “oficina” dos conceitos para sua efetiva elaboração? Não é uma pergunta fácil, pois uma das características das categorias que interessam a Sohn-Rethel é justamente que não possuem um vínculo direto com a experiência: o tempo e o espaço abstratos, a imutabilidade, a causalidade restrita – todas elas emergem no pensamento como se fossem ideias puras, sem correspondência com referentes concretos, justamente porque não correspondem à experiência do tempo, do espaço, da perenidade real ou da transformação material da natureza. A ideia de que alguém iria simplesmente intuir a partir do ato de troca e de sua abstração real uma forma mental para essas abstrações é reintroduzir o dualismo que Sohn-Rethel se esforçou tanto para superar – afinal, para reconhecer na prática social esse conteúdo abstrato, o sujeito do conhecimento precisaria já ter acesso a essas categorias em algum nível, o que criaria um argumento circular. Sohn-Rethel precisa, ao invés disso, incluir dentro da sua “oficina” da abstração real o processo, igualmente real e prático, pelo qual as características da abstração mercantil, removidas do concreto, aparecem na própria concretude, como um referente real, algo que se apresenta para a cognição e o pensamento. É um argumento que busca explicar a continuidade de duas esferas descontínuas – economia e conhecimento – e não se contenta com um paralelismo.

É por isso que a teoria da conversão da abstração real em abstração ideal é o verdadeiro cerne da teoria de Sohn-Rethel. É aqui que se apresenta o principal desafio para sua teoria e também sua contribuição menos elaborada. Pois não basta dizer que existem abstrações que antecipam as abstrações do pensamento operando na realidade econômica – é preciso ainda que essas mesmas abstrações se apresentem, de alguma maneira, para os atores de quem se separaram inicialmente. A forma social não-experimentada precisa se tornar experimentável enquanto tal, como um desdobramento interno dessa mesma prática econômica. É por isso que o surgimento da moeda cunhada tem um papel tão importante para Sohn-Rethel: trata-se do momento quando os portadores de dinheiro não carregam mais no bolso uma mercadoria cuja relação com as demais é dada pela magnitude do valor concretamente expresso em sua materialidade – por exemplo, a quantidade de ouro específica das moedas que carrega –, mas uma mercadoria cuja principal realidade é expressar a forma abstrata valor, mesmo que sua forma material não corresponda a uma quantidade particular de valor. Esse é um desdobramento muito especial, que mobiliza uma dimensão da mercadoria-dinheiro que é raramente investigada em detalhe.

Apesar de não aparecer tão claramente no primeiro capítulo de O capital, onde Marx distingue a forma do equivalente universal e a forma-dinheiro em termos da exclusão de uma mercadoria particular da esfera do uso, no segundo capítulo encontramos um suplemento crucial à análise do dinheiro. Afinal, não é qualquer mercadoria que, historicamente, ocupou o lugar funcional de dinheiro – por que o ouro ou a prata, ou o sal, seriam mercadorias adequadas para tal função, mais do que outras? Em “O processo da troca”, Marx lida diretamente com essa questão. Vale citar a passagem em extensão:

“Ora, que ‘o ouro e a prata não sejam, por natureza, dinheiro, embora o dinheiro seja, por natureza, de ouro e prata’ demonstra uma harmonia entre suas propriedades naturais e suas funções. Até aqui, no entanto, conhecemos apenas a função do dinheiro de servir como forma de manifestação do valor das mercadorias ou como o material, no qual as grandezas de valor das mercadorias se expressam socialmente. A forma adequada de manifestação do valor ou da materialidade do trabalho humano abstrato – e portanto igual – só pode ser encontrada numa matéria cujos exemplares possuam todos a mesma qualidade uniforme Por outro lado, como a diferença das grandes de valor é puramente quantitativa, a mercadoria-dinheiro tem de ser capaz de expressar diferenças puramente quantitativas, podendo ser dividida e ter suas partes novamente reunidas como se queira. O outro e a prata possuem essas propriedades por natureza.

O valor de uso da mercadoria-dinheiro duplica. Ao lado de seu valor de uso particular como mercadoria – como o uso do ouro no preenchimento de cavidades dentárias, como matéria prima de artigos de luxo, etc – ela adquire um valor de uso formal, que deriva de suas funções sociais específicas”

O que Marx introduz aqui é de extrema importância. Não se trata apenas do surgimento de uma mercadoria que opera como dinheiro em relação a outras mercadorias, expressando em seu valor de uso o valor das demais, mas o fato de que alguns materiais, na medida em que imitam as propriedades das abstrações do valor, apresentam um outro tipo de utilidade, um “valor de uso formal”. Isto é, são materiais que tornam palpáveis as determinações da abstração real da troca mercantil. Ora, o valor é uma substância social abstrata, puramente quantitativa, que podemos repartir em quantidades menores e reunir em quantidades maiores – e assim também são o ouro e a prata, substâncias naturais em grande parte homoméricas, isto é, capazes de serem quantitativamente repartidas sem alterarem sua qualidade. Um carro é uma mercadoria de uma certa qualidade e uma certa quantidade de valor, mas “meio carro” não vai ter metade do valor do carro – e nem será um carro, mas um conjunto de peças e restos de automóvel, algo de outra qualidade.

A ideia de um “valor de uso formal” sugere que objetos podem apresentar a propriedades específicas de certas relações sociais – no caso, a relação entre mercadoria e dinheiro – e é por esse uso adicional, de encarnar uma forma, que o dinheiro serve de mediador entre as abstrações reais da prática econômica e o ator social que, através da experiência do dinheiro, acessa algo das abstrações reais que estruturam a lógica da mercadoria. Para toda relação entre duas mercadorias quaisquer, existe uma transformação na mercadoria-dinheiro que expressa essa relação: se eu comparo duas mercadorias de valores diferentes, posso expressar isso em termos de duas quantidades de dinheiro distintas – uma vale tantos reais, a outra vale tanto mais – se eu comparo duas mercadorias e concluo que são equivalentes, existe uma quantidade de dinheiro específica que expressa essa equivalência também. O valor de uso formal, nesse sentido, converte uma rede de relações formais – retiradas da experiência – em uma forma particular, situada, e o proprietário de dinheiro no possuidor de uma chave, um ponto de vista, capaz de desvendar essa rede abstrata. Sem essa mediação, esse desdobramento interno ao campo da prática social, não seria possível o surgimento das abstrações mentais que também não correspondem aos dados de nenhuma experiência particular – elas são fruto da experiência de um objeto sem conteúdo experimental, porém inserido na prática social.

O conceito de valor de uso formal é muito mais importante, para a coerência da análise de Sohn-Rethel, do que o exemplo que ele mesmo prefere focar, o surgimento da moeda cunhada e do lastreamento da magnitude do valor no dinheiro impresso pelo Estado. O uso que Sohn-Rethel faz da lógica da propriedade é na verdade um dos aspectos mais fracos de sua teoria. Nem é verdade que só existe troca mercantil entre proprietários capazes de alienar suas posses – coisa que muitos antropólogos já demonstraram –, pois o “solipsismo prático” do ato de troca pode ser garantido de outras maneiras, como não é verdade (nem necessário para a teoria de Sohn-Rethel) que a troca de presentes nas “sociedades da apropriação” seja considerada menos abstrata. Tratam-se antes de outras formas de abstração real – que levaram, inclusive, ao surgimento de outras abstrações puras, diferentes daquelas que a troca mercantil promoveu.

Essa vacilação na maneira de tratar a lógica da mercadoria – às vezes examinada em sua fenomenologia própria, às vezes simplificada, em nome de contrastes e misturas com a lógica da dádiva e da propriedade privada – leva também a um enfraquecimento de uma das principais contribuições de Sohn-Rethel. Afinal, um dos ganhos da teoria materialista do conhecimento é permitir localizarmos a existência de abstrações reais dentro da prática social – algo como “pensamentos sem pensadores” – e demonstrar que os mesmos mecanismos que garantem a síntese social de uma sociedade – como o dinheiro – também permitem a conversão de algumas dessas abstrações práticas em abstrações conceituais. Não se trata de pura ideologia, pois o acesso a essas abstrações não carrega consigo um regime de aplicação determinado: o conceito de pura unidade imutável no tempo e no espaço pode dar origem a concepções filosóficas datadas, mas também serviu de base para uma revolução na matemática e na física. Nesse sentido, o cerne da teoria de Sohn-Rethel não é tanto uma teoria da ciência como fruto da lógica mercantil – o que pode em parte ser verdade – mas uma teoria de como a organização coletiva humana excede, em sua existência social e histórica, os limites dessa própria coletividade, colocando em jogo relações, abstrações e pontos de vista que não são fruto de nenhuma concepção prévia dos atores sociais. De certa maneira, é uma teoria da gênese das formas a partir da cooperação – categoria que, no próprio Marx, não é redutível à soma dos trabalhos individuais, e nem da experiência agregada dos trabalhadores. O surgimento das abstrações derivadas da prática de troca mercantil demonstram a força dessa teoria, mas não exaurem seu alcance e potencial. Assim como é possível investigar as abstrações reais que organizam a realidade social de outras sociedades – e que levaram a invenções intelectuais diferentes, mas igualmente extraordinárias – é também possível nos utilizarmos dessa teoria para pensar a própria organização política como também uma importante “oficina de conceitos”.


Trabalho intelectual e manual, de Alfred Sohn-Rethel
Qual a relação entre dinheiro e conhecimento? Nesta genealogia da separação entre trabalho intelectual e manual, Alfred Sohn-Rethel revela as afinidades estruturais e estruturantes entre as abstrações conceituais do pensamento ocidental e a forma mercadoria. Um dos principais textos da teoria marxista do pós-guerra, Trabalho intelectual e manual exerceu influência decisiva sobre os principais autores da chamada Escola de Frankfurt, como Theodor Adorno e Walter Benjamin.

Sohn-Rethel desenvolve a tese ousada de que a análise marxiana da mercadoria é chave não só da crítica da economia política, mas também da origem histórica do próprio pensamento conceitual ocidental e da divisão entre “cabeça e mão” que dele decorre: “a separação entre trabalho intelectual e manual é tão imprescindível para a dominação da classe burguesa quanto a propriedade privada dos meios de produção.” Ao cunhar o conceito de “abstração real” e reposicionar as discussões sobre ciência, técnica e epistemologia no campo marxista, a obra de Sohn-Rethel apresenta fertilidade duradoura para a filosofia crítica contemporânea, inspirando autores como Slavoj Žižek, Anselm Jappe, Antonio Negri e Giorgio Agamben, entre outros.

“Alfred Sohn-Rethel foi o primeiro a chamar a atenção para o fato de que na atividade universal e necessária do espírito, se esconde incondicionadamente trabalho social.”
Theodor W. Adorno

Fruto de mais de cinquenta anos de elaboração e reelaboração, Trabalho intelectual e manual chega pela primeira vez às livrarias brasileiras com tradução direta do alemão feita por Elvis Cesar Bonassa a partir da edição mais recente da obra, consolidada após detalhada revisão do autor. Com prefácio de Olgária Matos e orelha de Vladimir Safatle, a edição da Boitempo vem incrementada de preciosos anexos que documentam a rica interlocução de Sohn-Rethel com Adorno e Benjamin.

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Gabriel Tupinambá trabalha como psicanalista no Rio de Janeiro. É membro do coletivo de pesquisa internacional Subconjunto de Prática Teórica, do grupo Espaço Comum de Organizações, e coordenador de estratégia social no Instituto Alameda. É autor de O desejo de psicanálise: exercícios de pensamento lacaniano, além de coautor dos livros Arquitetura de arestas: as esquerdas em tempos de periferização do mundo (Autonomia Literária, 2021) e Hegel, Lacan, Žižek (Atropos, 2013).


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