Um escritor condenado em liberdade

Por Nathalia Colli

Franz Biberkopf sai da penitenciária de Tegel após quatro anos de reclusão e, ao observar as ruas da movimentada e modernizada Berlim, conclui: “A pena começa agora”. Uma sensação bastante similar parece ocorrer com Steve, protagonista da novela Prisão perpétua de Ricardo Piglia, que se torna um sujeito obcecado pelas lições que a prisão o ensinou, incapaz de observar a realidade fora das lentes duras e violentas do período prisional, pois estas lhe parecem, ainda assim, mais vivas que os olhares dos “libertos”. Nessa pequena listagem, podemos recuperar também Kafka, ao lado de seu agrimensor K., personagem de O castelo, que insiste em afirmar que está preso do lado de fora do muro e que entrar é o único jeito de ser livre. Tiago Ferro, ao chamar nominalmente por Piglia, parece querer remeter o leitor a essa breve tradição dos “condenados em liberdade”. No escrito que dá título ao livro, “Prisão perpétua”, o autor reflete sobre sua chegada em Princeton, cidade que o acolheu junto de sua família durante um ano de bolsa de estudos. Certo de estar, enfim, liberto do Brasil, ou de sua realidade paranoide desde o golpe de 2016, Ferro passa a assimilar a experiência local a partir de seu olhar aprisionado pelo ponto de vista periférico:

“O outro lado da moeda dessa mudança é que antes de partir eu já vinha lentamente redirecionando meu interesse para o novo destino. Mais exatamente para o horror norte-americano. Mass shootings, violência contra imigrantes, consumo desenfreado, infantilização da vida adulta e uma possível volta de Donald Trump à Presidência para ficar nos pontos principais.”

Não bastasse ser um latino no império, o crítico está interessado no lado B do american way of life, cuja natureza, para ele, só é mesmo válida enquanto padronização da cultura de morte. Talvez essa seja, afinal, a brasilianização do centro a que tanto nos referimos, a predileção pelo olhar negativo, ou sua inevitabilidade diante de um projeto moderno em frangalhos, o qual tão bem conhecemos. A visão catastrófica da periferia, contudo, parece ser confirmada quando o autor abre o New York Times e, entre gracejos com a cultura brasileira, está também noticiada a fuga do jovem que assassinou brutalmente sua ex-namorada na Pensilvânia – de repente, o sujeito que estava livre da força gravitacional brasileira se vê de novo no lusco-fusco de seu país. Coincidência trágica ou risível, tratava-se de um jovem brasileiro condenado à prisão perpétua segundo as leis de segurança nacional dos Estados Unidos. Nessa curiosa tentativa de assimilação do claustro local a partir de certo universal brasileiro, o texto de Tiago Ferro observa de perto a naturalização educacional do mass shooting e o processo de formação recebido por sua filha na escola para lidar com situações de crise. Ponto de contato com os textos ficcionais do autor, mais conhecidos do público, é essa angústia que se solidifica no sujeito e se transforma em centro do ensaísmo.

Estamos diante de uma forma curiosamente outra, que faz da atomização característica de nosso tempo um método de aproximação com a realidade, emprestando elementos da reflexão subjetiva à reflexão objetiva, nem sempre nessa ordem. Dessa outra forma surgem o risco e o desnível de impressões que funcionam como força ordenadora de textos mais longos, como também explodem pequenos fragmentos herméticos, capazes de exigir do leitor tanto a referência teórica quanto a vivida, para o complemento dos recortes.

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A prisão perpétua na qual Ferro está metido ganha contorno evidente nos ensaios finais dedicados a Chico Buarque, ordenados no terceiro e último bloco de textos. Neles, a presença da crítica de Roberto Schwarz é evidente e funciona como guia ordenador dos momentos altos da análise de Ferro à obra do romancista e compositor. Assim como em “Millôr Fernandes, intérprete do Brasil”, o célebre ensaio de Schwarz “Cultura e política 1964-1969” formaliza as acepções estéticas e cria um pequeno horizonte político a ser almejado em torno desta ou daquela obra. A presença de Antonio Candido no primeiro ensaio sobre Chico não passa despercebida, e o acerto de contas com as supostas crenças no potencial libertador contido dialeticamente em nossa condição de atraso chama atenção. Esquematizando, Ferro sugere que há um furo interpretativo nas análises de Candido armadas em “Literatura e subdesenvolvimento” quanto à consciência amena do atraso e à posterior consciência catastrófica do atraso: em ambas, para o autor, ainda impera certa confiança de que o subdesenvolvimento queimará etapas e chegará a cumprir uma promessa emancipatória. Parte importante da crítica a certa crença desenvolvimentista que supostamente guia o pensamento de Candido é o que Ferro determina enquanto escamoteamento do que havia de pior no regionalismo ingênuo de país novo que imperava no XIX, a saber, a aberração escravocrata. Ainda que discorde da bola levantada, pois até mesmo na avaliação do romantismo local Candido foi capaz de balizar nossas aberrações intuindo seus desfechos, vale dizer que se trata de um sintoma geracional a desconfiança do progressismo de nossos antepassados. Isso equivale a dizer que a proposta de um país esgotado só é cabível pelo acúmulo de expectativas civilizatórias quebradas a meio do caminho e não pela cobrança por uma radicalização do pensamento a contrapelo. Visto pelo retrovisor do acidente, todo passo adiante já se parece com o desastre.

Em “Nação e reflexão”, Paulo Arantes aproxima nosso nacionalismo da hipótese proposta por Benedict Anderson em Comunidades imaginadas, cujo poder constitutivo do pensamento e da própria imaginação estaria na criação comum de expectativas com aquilo que a modernidade convencionou enquanto nação. Ou seja, problemática ou não, é a essa tradição crítica que nos apegamos quando precisamos colocar em marcha algum pensamento.

“Talvez seja desnecessário antecipar que foi precisamente tal imaginação nacional que nos permitiu começar a pensar – e, quando ela se apagar, é possível que a extinção do pensamento a siga de perto, a menos de uma nova invenção de uma e outro, ou coisa que o valha enquanto impulso liberador da reflexão.”1

Imaginação nacional e pensamento crítico eram parte de um mesmo percurso civilizatório; ainda que as consequências desse processo sejam hoje avaliadas como desastrosas, temos dificuldade de pôr em marcha uma análise que não reponha seus termos e métodos. E agora, como ficamos neste apagar das luzes? Como ficamos diante do país esgotado? Pelo próprio movimento do livro que temos em mãos, vê-se que o país esgotado diz respeito àqueles que se puseram a pensá-lo durante todo um século. Tiago Ferro parece se irmanar com alguns poucos que compartilham de certo incômodo com seu próprio pessimismo, sem, no entanto, poder se livrar dele. Franco Berardi, Fernando Pessoa, Nuno Ramos, Eduardo Climachauska, Chico Buarque e os atentos ao Zeitgeist, nestes breves ensaios, formam este novo aglutinado dos que vagam condenados pelo globo da morte de tudo. Livres da formação nacional, é agora que a pena dos intelectuais começa.

Notas

  1. Paulo Arantes, “Nação e reflexão”, em Benjamin Abdala Jr. e Salete de Almeida Cara (orgs.), Moderno de nascença (São Paulo, Boitempo, 2001), p. 29. ↩︎

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Nathalia Colli é doutoranda em Filosofia e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. 



Prisão perpétua: e outros escritos, de Tiago Ferro
Entre 2016 e 2024, período de turbulência política, social e econômica não só no Brasil, mas no mundo todo, Tiago Ferro escreveu uma série de textos que perpassam o horror e a distopia contemporânea. Prisão perpétua traz ao leitor 27 escritos que vão de ensaios e intervenções a resenhas e experimentações ficcionais.

“Não surpreendem o som e a fúria da prosa de ensaio reunida nesta Prisão perpétua. Transitando aos trancos e relâmpagos entre o diário de bordo e a montagem, juízos finais e paráfrases, alguma crítica literária e cultural comprimida entre imprecações bíblicas dirigidas à conjuntura de fim de linha em que passamos a viver. Numa palavra, um belo pandemônio.”
Paulo Arantes, autor de O novo tempo do mundo

O texto que dá título ao livro é uma reflexão sobre sua chegada a Princeton, Estados Unidos, cidade onde o autor passou um ano com sua família por conta de uma bolsa de estudos. A experiência do olhar estrangeiro e periférico perpassa outras passagens da obra. O alcance e o fortalecimento da extrema direita no Brasil e no mundo, a precariedade da vida e do trabalho e o aprofundamento da economia neoliberal são também assuntos recorrentes.

Os livros, a música e outras manifestações culturais marcam parte da obra. Ferro passa pela produção de nomes como Chico Buarque, Bob Dylan, Fernando Pessoa, Roberto Schwarz e Judith Butler e os relaciona a temas contemporâneos.

“Estamos diante de uma forma curiosamente outra, que faz da atomização característica de nosso tempo um método de aproximação com a realidade, emprestando elementos da reflexão subjetiva à reflexão objetiva, nem sempre nessa ordem. Dessa outra forma surgem o risco e o desnível de impressões que funcionam como força ordenadora de textos mais longos, como também explodem pequenos fragmentos herméticos, capazes de exigir do leitor tanto a referência teórica quanto a vivida, para o complemento dos recortes”, escreve Nathalia Colli no posfácio.

Disponível a partir de: 14 de abril de 2025.

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