Um belo pandemônio
Quando o bafo da morte sopra com força no cangote de um velho conhecido: o intelectual emparedado pela condição periférica. Leia o prólogo de Paulo Arantes a "Prisão perpétua", reunião de ensaios do premiado escritor Tiago Ferro.
Por Paulo Arantes
Se José Antonio Pasta Jr. tem razão, o melhor da literatura brasileira desde Machado carrega a morte na alma. O ponto de vista da morte seria uma estrutura recorrente da cultura brasileira. Está claro que não teria cabimento abrir agora essa caixa preta, se é que eu conseguiria. O que sei, como todo mundo, é que esse quadro teria permanecido submerso, não fosse o poder retrospectivo de revelação e assombro que o período ditatorial propiciou. Tanto é assim que aquele céu de chumbo nunca mais saiu de cena. Nos anos recentes de pandemia e exceção, ocupou-a por inteiro: para além da devastação real do vírus, o contágio das imaginações confinadas pelo cerco da morte. Não falei em cena por acaso, cujas tábuas, como sabido, representam o mundo. Mal começados nossos trinta anos gloriosos (de fato uma miragem de duas décadas, 1994-2014), foi um tal de grupos independentes de teatro botarem no palco um bloco de personagens gesticulando como natimortos ou dando a entender que morriam como país. Forçando um pouco a nota, quem me diz que na palavra de ordem do momento, “ainda estou aqui”, não é essa outra voz nossa de todos os dias que ressoa? Ela e “o seu terrível abraço”, para entrar de vez nos escritos de Tiago Ferro, cujo segundo romance acabo de citar.
À vista do exposto, não surpreendem o som e a fúria da prosa de ensaio reunida neste Prisão perpétua. Transitando aos trancos e relâmpagos (Vilma Arêas) entre o diário de bordo (Oswaldo Louzada) e a montagem, juízos finais e paráfrases (Ana Paula Pacheco), alguma crítica literária e cultural comprimida entre imprecações bíblicas dirigidas à conjuntura de fim de linha em que passamos a viver. Numa palavra, um belo pandemônio.
Nesse grande NÃO rodeado de pequenos SIM, dá pra sentir novamente o bafo da morte. Que desta vez sopra com força no cangote de um velho conhecido: o intelectual emparedado pela condição periférica. Tampouco é de hoje que este país dos infernos nos consome. Cedo nos cansamos, envelhecemos e morremos depressa — como resumia Silvio Romero o lado B da confortável nulidade dos Brás Cubas do seu tempo.
Aqui a nota específica, como costuma dizer o pai da matéria brasileira, que dá o tom nessa fieira de ensaios insólitos, a rigor entradas do diário de um detento, como o título do livro permite concluir. A saber, a porta da prisão só se abre de verdade para aqueles que não aguentam o tranco. Não por acaso, aos que não pediram para sair, aos quais é dedicado um dos romances do escritor. Uma visão assim tão ousada impressiona. No sem-número de tratados sociológicos sobre a presumida e tantas vezes anunciada morte dos intelectuais, que eu saiba, nenhum a tomou em sua acepção literal e dramática, a morte voluntária.
A primeira parte deste livro, tão fora de esquadro que poderia ser lido muito bem como uma novela, se passa numa colônia de férias chamada Princeton. Entre uma boa pescaria cultural e outra não tão boa — cujo ânimo compensatório ele mesmo taxará mais adiante de “ridículo” —, o narrador vindo dos confins fica mesmo é de olho no pipocar de notícias das atrocidades que se sucedem do lado de fora do small world do qual se tornou residente temporário. E que, por sua vez, o leitor fique também de olho nesse intercâmbio entre o “dentro” e o “fora”, para o qual, no posfácio, Nathalia Colli providenciou
termos de comparação de grande porte.
Como preciso me encaminhar para o desfecho, assinalo de passagem que, entre as modalidades de mass shooting, chama particularmente a atenção do narrador a variante suicide by cop, em que, depois de levar consigo uma dezena de alvos aleatórios, o atirador terceiriza sua planejada autodestruição para os agentes da ordem. Acesa a luz vermelha, o foco, desta vez literário, se desloca para a hesitação de Salman Rushdie diante da faca assassina que avança em sua direção: “por que não lutei? por que não corri?”. A explicação do romancista indiano não convence nosso autor, menos pela trivialidade da sociologia ad hoc, mas porque já saíra do Brasil com a sua opinião formada em matéria de facas de cozinha enferrujadas, intelectuais “sem povo”, que para variar lhes fora subtraído pelas tenebrosas transações de um país no último artigo de morte. Quer dizer, opinião sobre o ambíguo fim do protagonista em fuga no Estorvo, de Chico Buarque, com o qual por sua vez fecha, ou enfim abre, as portas de sua prisão e põe um ponto-final em seu volume de ensaios. “Recebo a lâmina inteira em minha carne, e quase peço ao sujeito para deixá-la onde está, adivinho que à saída ela me magoará bem mais que quando entrou”. Tiago não hesita, é suicídio mesmo e, ainda por cima, com classe, roman style. A confirmação do sentido da cena viria 28 anos depois com o tamanho bem carioca da vida, paixão e suicídio de outro intelectual, o escritor Duarte em Essa gente.
Pelas mãos de quem, resta decidir. “Essa gente” está do lado de fora ou de dentro da prisão? Pertence à sociedade que a heroína cultural Danuza Leão (versão Ruy Castro) tentou conduzir à terra prometida da civilização brasileira ou ao povo feio, sujo e malvado, que nos trancou todos aqui dentro?
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Paulo Eduardo Arantes é filósofo, professor aposentado do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), onde lecionou entre 1968 e 1998. Publicou, entre outros, Hegel: a ordem do tempo (1981), Ressentimento da dialética (1996), Extinção (2007) e O novo tempo do mundo (2014). Coordenador da coleção Estado de Sítio da Boitempo, colaborou com a coletânea O que resta da ditadura: a exceção brasileira, organizada por Vladimir Safatle e Edson Teles, com o ensaio “1964, o ano que não terminou”.
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CONHEÇA A OBRA
Prisão perpétua: e outros escritos, de Tiago Ferro
Entre 2016 e 2024, período de turbulência política, social e econômica não só no Brasil, mas no mundo todo, Tiago Ferro escreveu uma série de textos que perpassam o horror e a distopia contemporânea. Prisão perpétua traz ao leitor 27 escritos que vão de ensaios e intervenções a resenhas e experimentações ficcionais.
“Não surpreendem o som e a fúria da prosa de ensaio reunida nesta Prisão perpétua. Transitando aos trancos e relâmpagos entre o diário de bordo e a montagem, juízos finais e paráfrases, alguma crítica literária e cultural comprimida entre imprecações bíblicas dirigidas à conjuntura de fim de linha em que passamos a viver. Numa palavra, um belo pandemônio.”
— Paulo Arantes, autor de O novo tempo do mundo
O texto que dá título ao livro é uma reflexão sobre sua chegada a Princeton, Estados Unidos, cidade onde o autor passou um ano com sua família por conta de uma bolsa de estudos. A experiência do olhar estrangeiro e periférico perpassa outras passagens da obra. O alcance e o fortalecimento da extrema direita no Brasil e no mundo, a precariedade da vida e do trabalho e o aprofundamento da economia neoliberal são também assuntos recorrentes.
Os livros, a música e outras manifestações culturais marcam parte da obra. Ferro passa pela produção de nomes como Chico Buarque, Bob Dylan, Fernando Pessoa, Roberto Schwarz e Judith Butler e os relaciona a temas contemporâneos.
“Estamos diante de uma forma curiosamente outra, que faz da atomização característica de nosso tempo um método de aproximação com a realidade, emprestando elementos da reflexão subjetiva à reflexão objetiva, nem sempre nessa ordem. Dessa outra forma surgem o risco e o desnível de impressões que funcionam como força ordenadora de textos mais longos, como também explodem pequenos fragmentos herméticos, capazes de exigir do leitor tanto a referência teórica quanto a vivida, para o complemento dos recortes”, escreve Nathalia Colli no posfácio.
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