Analisar o lugar do racismo no nacionalismo é decisivo
Neste trecho de "Raça, nação, classe", livro escrito a quatro mãos com Immanuel Wallerstein, o filósofo Étienne Balibar discute a relação entre nacionalismo e racismo: "Essa imbricação remete às circunstâncias nas quais os Estados-nações, estabelecidos em territórios historicamente contestados, se esforçaram para controlar os movimentos de população e para a própria produção do “povo” como comunidade política superior às divisões de classes."

Imagem: Wikimedia Commons
Por Étienne Balibar
As organizações racistas em geral recusam que as denominem como tais, assumindo o nacionalismo e proclamando a irredutibilidade das duas noções. Seria apenas uma tática de defesa ou o sintoma de um medo das palavras inerente à atitude racista? Na realidade, os discursos que falam da raça e da nação jamais estiveram muito distantes um do outro, a não ser sob a forma de uma negação: assim, a presença de “imigrantes” no solo nacional seria a causa de um “racismo antifrancês”. A própria oscilação do vocabulário nos sugere, então, pelo menos em um Estado nacional que não tem mais a obrigação de se constituir, que a organização do nacionalismo em movimentos políticos particulares inevitavelmente encobre o racismo.
Pelo menos alguns historiadores se serviram disso como prova para mostrar que esse — enquanto discurso teórico e como fenômeno de massa — se desenvolve “no campo do nacionalismo” onipresente na época moderna.1 Assim, o nacionalismo seria, se não a única causa do racismo, de qualquer maneira a condição determinante de sua produção. Em outras palavras, as explicações “econômicas” (devido a crises) ou “psicológicas” (devido à ambivalência do sentimento de identidade pessoal e de pertencimento coletivo) não teriam pertinência exceto à medida que esclarecessem os pressupostos ou as repercussões do nacionalismo.
Essa tese, sem dúvida, confirma que o racismo não tem nada a ver com a existência de “raças” biológicas objetivas.2 Ela mostra que o racismo é um produto histórico ou cultural, escapando ao mesmo tempo do equívoco das explicações “culturalistas” que, por outro viés, tendem também a fazer do racismo uma espécie de invariante da natureza humana. Ela tem a vantagem de romper o círculo que remete a psicologia do racismo a explicações que, na verdade, são exclusivamente psicológicas. Enfim, ela preenche uma função crítica relativa às estratégias de eufemização de outros historiadores que tomam muito cuidado para situar o racismo fora do campo do nacionalismo enquanto tal, como se fosse possível defini-lo sem nele incluir os movimentos racistas e, portanto, sem remontar às relações sociais que os induzem e que são indissociáveis do nacionalismo contemporâneo (particularmente, o imperialismo).3 Todavia, esse acúmulo de boas razões não implica necessariamente que o racismo seja uma consequência inevitável do nacionalismo nem a fortiori que, sem a existência de um racismo manifesto ou latente, o próprio nacionalismo seria historicamente impossível.4 A falta de nitidez das
categorias e das articulações persiste. Não devemos temer pesquisar longamente suas razões, que tornam inoperante qualquer “purismo” conceitual.
[…]
Por que é tão difícil definir o nacionalismo? Em primeiro lugar, porque o conceito jamais funciona sozinho, mas sempre faz parte de uma cadeia da qual ele é o elo central e, ao mesmo tempo, o elo mais frágil. Essa cadeia é constantemente enriquecida (de acordo com as modalidades que, aliás, variam de uma língua para outra) por novos termos intermediários ou extremos: civismo, patriotismo, populismo, etnismo, etnocentrismo, xenofobia, chauvinismo, imperialismo, jingoísmo… Desafio qualquer pessoa a fixar, de uma vez por todas, de modo unívoco, esses diferenciais de significação. Mas me parece que sua concepção geral pode ser interpretada de maneira muito simples.
No que diz respeito à relação nacionalismo-nação, a ideia central contrasta uma “realidade”, a nação, com uma “ideologia”, o nacionalismo. Todavia, essa relação é compreendida por uns e por outros de diferentes maneiras, pois nela estão subentendidas várias questões obscuras: será que a ideologia nacionalista é reflexo (necessário ou circunstancial) da existência das nações? Ou são as nações que se constituem a partir de ideologias nacionalistas (admitindo-se a possibilidade de que estas, ao atingirem seu “objetivo”, sejam em seguida transformadas por ele)? Será que a própria “nação” — e esta questão evidentemente não é independente das anteriores — deve ser, antes de mais nada, considerada um “Estado” ou uma “sociedade” (uma formação social)? No momento, deixemos de lado essas discussões, assim como as variantes que podem delas surgir por meio da introdução de termos como cidade, povo, nacionalidade…
No que se refere à relação entre nacionalismo e racismo, a ideia central contrasta agora uma ideologia e uma política “normais” (o nacionalismo) com uma ideologia e um comportamento “excessivos” (o racismo), seja para opô-los, seja para fazer de um a verdade do outro. Aqui também perguntas e outras diferenciações conceituais surgem imediatamente. Mais que concentrar nossa reflexão no racismo, não seria conveniente privilegiar a alternativa nacionalismo/imperialismo, mais “objetiva”? Mas esse confronto faz emergirem outras possibilidades: por exemplo, que o próprio nacionalismo seja o efeito ideológico-político do caráter imperialista das nações ou de sua sobrevivência em uma época e um contexto imperialistas. Podemos também complicar a cadeia nela introduzindo noções como fascismo e nazismo, com uma rede de perguntas a eles relacionadas: tanto um quanto o outro são nacionalismos? Imperialismos?
De fato, e é o que indicam todas essas perguntas, a cadeia é inteiramente povoada por uma questão fundamental. Quando, “em alguma parte” dessa cadeia histórico-política, entra em cena uma violência intolerável, aparentemente “irracional”, onde é preciso colocar essa entrada em cena? É preciso fazer um corte numa sequência em que, mais uma vez, somente entram “realidades”? Ou junto aos conflitos “ideológicos”? Aliás, será que é preciso considerar a violência como perversão de uma situação normal, um desvio em relação à hipotética “linha reta” da história humana, ou é preciso admitir que ela representa a verdade dos momentos anteriores e, desse ponto de vista, desde o nacionalismo, e até mesmo desde a existência de nações, o germe do racismo estaria no centro da política?
É evidente que, para todas essas questões, existe, conforme o ponto de vista dos observadores e as situações que eles refletem, uma enorme variedade de respostas. No entanto, considero que, em sua própria dispersão, elas não fazem nada além de girar em torno de um mesmo dilema: a noção de nacionalismo não para de se dividir. Há sempre um “bom” e um “mau” nacionalismo: o que tende a construir um Estado ou uma comunidade e o que tende a subjugar, a destruir; o que se refere aos direitos e o que se refere ao poder; o que tolera os outros nacionalismos e até mesmo os justifica, incluindo-os numa mesma perspectiva histórica (o grande sonho da “primavera dos povos”), e o que os exclui radicalmente, numa perspectiva imperialista e racista. O que concerne ao amor (até excessivo) e o que concerne ao ódio. Em última análise, a divisão interna do nacionalismo parece tão essencial e tão difícil de delimitar quanto a mudança de “morrer pela pátria” para “matar por seu país”… A multiplicação de termos “vizinhos”, sinônimos ou antônimos, é apenas a exteriorização disso. Acredito que ninguém escapou formalmente dessa reinscrição do dilema no próprio conceito de nacionalismo (e, quando foi expulsa da teoria, entrou de novo pela porta da prática), mas ela é ainda mais visível na tradição liberal, o que provavelmente se explica pelo equívoco muito profundo das relações do liberalismo e do nacionalismo há pelo menos dois séculos.5 É preciso notar também que, ao avançar um pouco essa discussão, as ideologias racistas podem, então, imitá-la e usá-la: não é função de noções como a do “espaço vital” simplesmente suscitar a questão do “lado bom” do imperialismo ou do racismo? E o neorracismo cuja proliferação observamos hoje, por meio da antropologia “diferencialista” e da sociobiologia, não se esforça constantemente para distinguir o que seria inevitável e, na realidade, útil (certa “xenofobia” que incita os grupos a defenderem seu “território”, sua “identidade cultural”, para preservar entre eles a “boa distância”) do que seria inútil e nocivo em si (a violência direta, a passagem ao ato), ainda que inevitável quando não se conhecem as exigências elementares da etnicidade?
Como sair desse círculo? Não basta demandar, como alguns analistas nos últimos tempos, a recusa dos julgamentos de valor, ou seja, a suspensão do julgamento sobre as consequências do nacionalismo em conjunturas diferentes6 ou, ainda, considerar o próprio nacionalismo estritamente como efeito ideológico do processo “objetivo” de constituição das nações (e dos Estados-nações).7 Na verdade, a ambivalência dos efeitos faz parte da própria história de todos os nacionalismos, e é precisamente isso que se deve explicar. Desse ponto de vista, a análise do lugar do racismo no nacionalismo é decisiva: mesmo que o racismo não seja visível da mesma maneira em todos os nacionalismos ou em todos os momentos da história, ele sempre representa, no entanto, uma tendência necessária a sua constituição. Em última análise, essa imbricação remete às circunstâncias nas quais os Estados-nações, estabelecidos em territórios historicamente contestados, se esforçaram para controlar os movimentos de população e para a própria produção do “povo” como comunidade política superior às divisões de classes.
Raça, nação, classe: as identidades ambíguas, de Étienne Balibar e Immanuel Wallerstein
Publicado no Brasil pela primeira vez, Raça, nação, classe traz ao leitor um profícuo debate sobre o racismo e sua relação com a luta de classes, o capitalismo e o nacionalismo. Como é possível que o racismo ainda seja um fenômeno crescente? Quais são as características específicas do racismo contemporâneo?
Esta obra tenta responder a essas perguntas fundamentais por meio de um diálogo entre o filósofo francês Étienne Balibar e o historiador e sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein. Ambos os autores desafiam a noção de que o racismo é uma continuação ou um retorno da xenofobia de sociedades do passado e o analisam como uma relação social indissoluvelmente ligada às estruturas sociais atuais – o Estado, a divisão do trabalho e a divisão entre centro e periferia – que são constantemente reconstruídas.Apesar de naturais divergências durante o diálogo, Balibar e Wallerstein enfatizam a modernidade do racismo e a necessidade de entender sua relação com o capitalismo contemporâneo. Acima de tudo, a obra revela as formas de conflito social presentes e futuras, em um mundo em que a crise do Estado é acompanhada por um aumento alarmante do nacionalismo, do chauvinismo e da xenofobia.
Notas
- A análise recente com mais argumentos é a de René Gallissot, Misère de l’antiracisme (Paris, Arcantère, 1985). ↩︎
- Esta era já a visão de Ruth Benedict em Race and Racism (Londres, Routledge/Kegan Paul, 1983 [1942]). Todavia, Benedict não faz uma efetiva diferenciação entre nação, nacionalismo, cultura ou, para ser mais preciso, ela tende a “culturalizar” o racismo por meio de sua “historização” como aspecto do nacionalismo. ↩︎
- Cf., por exemplo, Raoul Girardet, verbete “Nation: 4. Le nationalisme”, em Encyclopaedia Universalis (Paris, Encyclopaedia Universalis, 1968). ↩︎
- Como sustentei em um estudo anterior: “Sujets ou citoyens? Pour l’égalité”, Les Temps Modernes, n. esp., L’Immigration maghrébine en France, n. 452, mar.-abr.-maio 1984. ↩︎
- A questão matricial dos historiadores liberais do nacionalismo (seja como “ideologia”, seja como “política”) é: onde e quando se passa do “nacionalismo liberal” para o “nacionalismo imperialista”? Cf. Hannah Arendt, “L’Imperialiasme”, em Les Origines du totalitarisme. (Paris, Fayard, 1982 [ed. bras.: Origens do totalitarismo, trad. Roberto Raposo, São Paulo, Companhia das Letras, 1989]), e Hans Kohn, The Idea of Nationalism. A Study of Its Origins and Background (Nova York, MacMillan, 1944). A resposta comum a todos é: entre as revoluções “universalistas” do século XVIII e o “romantismo” do século XIX, que começou na Alemanha e, em seguida, estendeu-se a toda a Europa e, finalmente, ao mundo inteiro no século XX. Mas, se isso for observado em detalhes, é revelado que a Revolução Francesa já continha em si mesma a contradição dos dois aspectos: foi ela, então, que fez o nacionalismo “derrapar”. ↩︎
- Cf. as advertências de Tom Nairn, em “ The Modern Janus”, New Left Review, n. 94, 1975 (republicado em The Break-Up of Britain (Londres, NLB, 1977). Ver a crítica de Eric Hobsbawm, “Some Reflections on the Break-up of Britain”, New Left Review, n. 105, 1977. ↩︎
- O que não só é uma posição marxista, mas também a tese de outros pensadores “economistas” de tradição liberal: cf. Ernest Gellner, Nations and Nationalism (Oxford, Blackwell, 1983). ↩︎
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