Ao Dia da Vitória contra os nazistas

“Erguendo a bandeira da Vitória sobre o Reichstag” fotografia histórica de Yevgeny Khaldei, tirada em 2 de maio de 1945 durante a Batalha de Berlim, na Segunda Guerra Mundial.
Imagem: Wikimedia Commons

Por Urariano Mota

É histórica a imagem do soldado soviético em Berlim. Essa esmagadora vitória do Exército Vermelho sobre os nazistas não teria existido, é claro, sem a Revolução de 1917. Assim falam os personagens no romance A mais longa duração da juventude, que narra a juventude ardorosa contra a ditadura brasileira. Eles refletem no Recife o heroísmo da resistência mundial, soviética ao nazismo: 

“A revolução de 1917 deve muito à condução prática de Lênin. Ou não? – Alberto fala. Ele é a própria contradição de Mao Tsé-Tung. Imprevisível, ele vai de um ponto a outro feito mercúrio de termômetro, ora frio, ora quente. Zacarelli tenta acompanhar as oscilações da escala Celsius:  

— É claro. Sem Lênin, não havia 1917.

— Danou-se — me espanto. — Ele fez o tempo? Não deve ter sido assim. 

— Lênin foi fundamental, rapaz! — Alberto quase supera o volume da wurlitzer. — Sem ele, não tinha 1917.  

— Assim… — Zacarelli dá um passo à frente, dois atrás. — Assim… não é que sem ele não haveria a revolução. Mas sem ele a revolução não teria a cara que venceu na história.”

Então, a resistência para o conjunto dos jovens socialistas no Brasil era a memória transmitida pelos mais velhos comunistas, de um modo mais clandestino em conversas com a voz baixa e panfletos ocultos. Recebíamos a herança como um DNA da cultura e da história. Ninguém possuía relatos como os de A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch, por exemplo este colhido de Efrossínia Grigórevna Breus, capitã e médica:

“Estávamos atravessando a Prússia Oriental, todos já estavam falando da Vitória. Ele morreu … Morreu instantaneamente … Pelos estilhaços … Morte instantânea. Em um segundo. Me informaram que o corpo tinha sido trazido, corri para lá … Eu o abracei e não deixei que o levassem. Para enterrar. Na guerra, faziam os enterros logo em seguida: no dia da morte, se a batalha era rápida, juntavam todos na hora, traziam de todos os lugares e cavavam uma grande fossa. Cobriam. Às vezes, só com areia seca. E se você olhasse muito tempo para essa areia, parecia que ela se mexia. Tremia. A areia sacudia. Porque lá … Para mim, ainda havia gente viva, estavam vivos havia pouco. Eu os via, falava com eles … Não acreditava … Todos nós andávamos por ali e não acreditávamos que eles tinham ido para lá … Lá onde? 

Não permiti que ele fosse enterrado ali. Queria que ainda tivéssemos mais uma noite. Deitar ao lado dele. Olhar … Afagar … 

De manhã … Decidi que o levaria para casa. Para a Bielorrússia. E isso ficava a milhares de quilômetros. Estradas de guerra … Uma confusão … Todos acham que eu tinha ficado louca de tanta dor. ‘Você precisa se acalmar. Tem que dormir’. Não! Não! Eu ia de um general a outro, e assim cheguei ao comandante do front, Rokossóvski. No começo ele recusou … Estava louca! Quantos já estavam enterrados em valas comuns, em terras estrangeiras … 

Tentei mais uma audiência com ele: 

‘Quer que fique de joelhos?’ 

‘Eu entendo … Mas ele já está morto …’ 

‘Não tive filhos com ele. Nossa casa foi reduzida a cinzas. Até as fotografias foram perdidas. Não ficou nada. Se eu o levar para a nossa terra, restará ao menos o túmulo. E vou poder voltar para lá depois da guerra.’ 

Ele ficou calado. Andava pelo gabinete. Andava. 

‘O senhor já amou alguma vez, camarada marechal? Eu não estou enterrando meu marido, estou enterrando meu amor.’ 

Silêncio. 

‘Senão, também quero morrer aqui. Para que vou viver sem ele?’ 

Ele passou muito tempo calado. Depois, se aproximou e beijou minha mão. 

Deram-me um avião especial por uma noite. Entrei no avião … Abracei o caixão… E perdi a consciência.”

Mas em 1970 a juventude mais bela que este narrador conheceu era de militantes com ardor, pobreza e perseguição do Estado. Como nesta página do romance A mais longa duração da juventude:

“— O companheiro Célio não tem onde dormir. 

— Sei — respondo. E olho para todos, que são Célio, Selene e Luiz do Carmo. Mas todos olham para mim. Eu sou a salvação escolhida. E gaguejo, numa pretensão de resposta:  

— Olha, no meu quarto só tem uma cama. — Silêncio nos olhos fitos em mim. E continuo: — É um calor infernal. A gente sua em bicas.  

Ela me responde:  

— É bem melhor que dormir na rua. O companheiro está clandestino e pode ser preso. 

— Sei. Mas como ele pode dormir? Só pago uma vaga.  

Eu ainda não havia aprendido que no movimento clandestino as dificuldades se contornavam. Que haveria sempre um drible esperto. E que as dificuldades legais — o ‘moralismo burguês’ — tinham que ser superadas pela esperteza. Aliás, esperteza, nada, apenas uma ação necessária para a ética da revolução. Roubo, furto, nada disso existia. Expropriação era o nome. E se fosse o furto para um indivíduo? Ainda assim, porque os indivíduos da revolução já estavam desculpados pelo uso irrecorrível de uma ferramenta para a vida clandestina: livros, carro, carteira de identidade, roupas, alimentos, todas as coisas de terceiros estavam sob a mira da sobrevivência do militante. E eu vinha falar que só uma pessoa podia dormir na sauna, porque eu pagava só uma vaga.  

— Companheiro… — e a precoce revolucionária me fala didática, do alto da sua experiência provada. — Companheiro, ele sobe com você mais tarde, sem barulho. E qualquer coisa que acontecer é um amigo de visita. Antes que a dona da pensão acorde, ele já estará fora da pensão. Certo? 

— Certo — mal falo. A clandestinidade tinha suas leis, todas fora da lei. Eu aprenderia.”

Mas neste 9 de maio de 2025 chegamos com um presidente progressista à visita a Moscou. Chegamos. Portanto, não perguntem por quem os sinos dobram. Não perguntem jamais se valeu a pena. 

***
Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014), e de A mais longa duração da juventude (Editora LiteraRUA) que narra o amor, política e sexo dos militantes contra a ditadura.


O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha, de Giorgio Agamben
Como narrar o inenarrável ou testemunhar sobre algo que está além da compreensão humana? O que resta de Auschwitz, de Giorgio Agamben, procura, a partir de uma análise profunda do papel do testemunho como documento histórico e de seus limites enquanto relato pessoal, entender as dimensões da produção escrita dos sobreviventes do Holocausto nazista. Não se trata, portanto, de um livro sobre as circunstâncias materiais relacionadas ao maior campo de concentração de Hitler.

O que resta de Auschwitz investiga as dificuldades do testemunho quando este envolve a perda de referenciais básicos num espaço marcado pela total ausência de normas, onde o esforço pela identificação de algo parecido com uma lógica de funcionamento não só se mostrava vão, como também poderia significar a não sobrevivência.

O relato do escritor Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, é matéria-prima para a análise de Agamben. Levi se coloca como testemunha e condiciona sua sobrevivência à necessidade de contar essa história. Já os chamados “muçulmanos” – prisioneiros que perderam sua condição de homens e foram reduzidos a cadáveres ambulantes – são os únicos que poderiam dar testemunho verdadeiro do terror, se já não estivessem privados da linguagem. Agamben coloca que o valor do testemunho está essencialmente no que lhe falta, no que não pode ser dito por homens que já não o são. Em suas palavras,

“Auschwitz marca o fim e a ruína de qualquer ética da dignidade e da adequação a uma norma. A vida nua, a que o homem foi reduzido“.

A obra, que faz parte da coleção Estado de Sítio e traz apresentação de Jeanne Marie Gagnebin, recupera conceitos presentes nos anteriores Estado de exceção e Homo Sacer. Trata-se de leitura fundamental, onde Auschwitz é apresentado como o espaço de uma experiência em que se fundem as fronteiras entre o humano e o inumano, a vida e a morte, colocando à prova a reflexão de nosso tempo, que mostra sua insuficiência por deixar aparecer, entre suas ruínas, o perfil incerto de uma nova ética.

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