A quinta espera de Antonio Candido

Imagem: Divulgação
Por Tiago Ferro
Há algum consenso entre certa tradição crítica brasileira sobre o papel de parte da produção cultural da década de 1990 em antever a entrada desastrosa do Brasil no mundo pós-colapso do bloco soviético. Integram essa produção, entre outros, o primeiro romance de Chico Buarque, Estorvo (1991), o também romance de estreia de Paulo Lins, Cidade de Deus (1997) e, fechando a década, o filme Cronicamente inviável (2000), de Sérgio Bianchi. Fora do âmbito da cultura, caberia destaque à declaração do então presidente Fernando Henrique Cardoso à Folha, em 1996, de que 40 milhões de brasileiros ficariam fora da nova divisão internacional do trabalho. Mas esse seria um caso a ser pensado à parte.
Entre esses livros e filmes, que podemos chamar de pensamento da catástrofe brasileira, pode ser incluído, de forma contraintuitiva, já que não é o grupo em que normalmente o autor é colocado, o ensaio “Quatro esperas”, de Antonio Candido, originalmente publicado em 1990,1 abrindo, portanto, a década. O texto é divido em quatro partes que dialogam entre si, sendo cada uma dedicada a um autor: um poema de Cavafis, fragmentos de Kafka sobre a construção da muralha da China, um romance de Dino Buzzati e outro de Julien Gracq.
Em Cavafis, a aspiração pela catástrofe que seria causada pela invasão dos bárbaros sugere redenção. Nada acontece, a cidade está salva, daí a paradoxal frustração. São imprecisos o local e o tempo históricos, e o crítico fecha essa primeira espera com um salto ao presente: “O poema denso e curto de Cavafis […] serve bem de introdução ao mundo das esperas angustiadas, dos atos sem sentido lógico, da surda aspiração à morte individual e social, que formam alguns dos fios mais trágicos do mundo contemporâneo”2. Já em Kafka, a segunda espera, apesar da construção da muralha real ser um acontecimento com coordenadas históricas localizáveis, segundo Candido, “a China incaracterística parece fundir-se aos poucos na sociedade geral dos homens”3. Trabalho sem sentido e instâncias superiores jamais identificáveis para “descrever a irracionalidade do nosso tempo”. Ou seja, a avaliação oscila indecisa entre marca geral da humanidade e contornos modernos. Na análise de O deserto dos tártaros, a terceira espera, Candido reflete sobre vida e morte: “O sentido da vida de cada um está na capacidade de resistir, de enfrentar o destino sem pensar no testemunho dos outros nem no cenário dos atos, mas no modo de ser; a morte desvenda a natureza do ser e justifica a vida”4. Por fim, no romance de Julien Gracq, a quarta espera, Candido identifica sentidos alternativos da história: “As releituras mostram no subsolo do texto a concatenação latente, que não é formada pela articulação necessária com o momento anterior, mas obedece a algo ominoso, regido por causalidade estranha”5.
Como se nota, nenhum dos livros analisados versa sobre o Brasil, destoando assim do referido conjunto de esforços de pensar a catástrofe brasileira nos anos 1990. Será necessária a “quinta espera” para iluminar o papel e a força das coisas do país nessas inquietações específicas e assombrosas do autor de Literatura e sociedade. Essa espera final poderia estar involuntariamente no filme de Eduardo Escorel, Antonio Candido, anotações finais, de 2024.
Candido preencheu mais de oitenta cadernos ao longo da vida com todo tipo de reflexão. O filme de Escorel é uma seleção das anotações feitas nos anos de 2015 e 2017, com imagens de arquivo e narração de Matheus Nachtergaele. Daquilo que conhecemos dos registros do crítico durante a hora e pouco do documentário, o primeiro aspecto a ser destacado é a qualidade literária impecável de anotações feitas sem intuito de publicação. Em um único parágrafo, Candido apresenta sugestões avançadas de crítica literária entrelaçadas com seu percurso pessoal e familiar e a história do Brasil. Passamos das memórias de infância em Poços de Caldas para Baudelaire, reflexões sobre corpo e mente, a emoção da leitura, violência urbana em São Paulo e, sempre, vida e morte. Cabe pensar se, com esses diários, ou com o que sobreviveu deles, já que muitos foram destruídos pelo autor em “rompantes negativistas”, o crítico não estaria “propondo” uma forma ensaística até então ausente em sua obra publicada.
Se o tom lúgubre e negativo de muitas avaliações históricas e privadas vai na contramão do senso comum sobre o intelectual engajado e socialista — que via na formação de um departamento avançado de letras e de um partido dos trabalhadores contribuições inequívocas a um processo positivo em curso —, ele também reforça e ilumina (retrospectivamente) as análises de “Quatro esperas”, as quais, de fora do esquadro na obra do crítico, saltam ao palco principal.
“Na madrugada de 12 de maio, oito meses antes desta tarde de chuva em São Paulo, eu morri.” Eis a primeira frase do filme, narrada em meio à chuva miúda da vista cinzenta do apartamento do crítico no bairro dos Jardins em São Paulo. Apesar da morte, Antonio Candido segue preenchendo os dias anotando os diários, e desejando a morte de fato: “Ao acordar me veio a ideia que talvez eu já tenha ultrapassado a hora certa para morrer”, ou, mais direto: “Quero morrer”. O artifício do “autor-defunto” não é exclusivo dos anos finais de Candido, que faleceria em 2017, prestes a completar um século. Numa entrada de 17 de janeiro de 1997, ele anota: “Morto, fechado no caixão, espero a vez de ser cremado. O mundo não existe mais para mim, mas continua sem mim”6.
A câmera de Escorel perambula lentamente pelo apartamento do crítico enquanto Nachtergaele lê os cadernos, transmitindo a ideia de que é o próprio Antonio Candido caminhando solitário por cômodos antiquadamente melancólicos. As cores rebaixadas e as sonatas de Beethoven e Haydn como trilha dão o tom fantasmagórico ao filme.
Da dialética entre vida privada e história política, “caímos num buraco sem fundo”. A “nostalgia mutiladora” recua reiteradamente aos tempos felizes de casado, mas também ao passado mais distante, em que encontra segredos familiares inconfessáveis: “O pai da vovó Mariana enriqueceu no tráfico [de escravizados]. O fato do dinheiro resultante não ter chegado sequer até a minha mãe é um magro consolo que não nos desliga da sinistra teia de interesses que está na base do Brasil via escravidão. Du passé nous en sommes faits [Somos feitos do passado]”. A luta socialista esbarra em privilégios pessoais: “Apesar de todo o nosso socialismo, as nossas teorias, as nossas lutas, estávamos no fundo trabalhando também para confundir a democracia com os nossos interesses desinteressados de classe”, e crimes políticos, tendo Eduardo Cunha e depois Michel Temer e Romero Jucá “com o Supremo, com tudo”, em primeiro plano, se misturam à “banalização do homicídio”.
Dessa dialética essencialmente negativa, a “quinta espera” ganha sua dimensão histórica forte: “No futuro, quando estudarem o nosso tempo, ficarão perplexos [assim] como nós ficamos lendo como eram as coisas nos tempos das grandes invasões bárbaras […] ou dos genocídios praticados pelos europeus inclusive e seu descendentes nas Américas: a escravização dos naturais e dos africanos. Em suma, dos processos civilizatórios dos quais proviemos”. O arremate imprevisto contamina o passado na origem, matando no nascedouro qualquer projeção de civilização, como aquele ventilado em Formação da literatura brasileira, de 1959.
No filme de Escorel surgem, do tamanho brasileiro, as inquietações de difícil localização histórica das quatro esperas, que ganham novo impulso no mesmo passo que reforçam a tragédia brasileira. O ritmo “ominoso” é a própria história do Brasil e o fechamento da segunda espera resume o processo social periférico visto da única totalidade possível, a da morte: “Para mim, um nadador já é um afogado”, dizia Marcel Carné. No estranho país da “quinta espera”, a morte já aconteceu, não houve redenção alguma, e apenas o crítico notou.
* Texto publicado na edição de número 44 da revista Margem Esquerda.
Notas
- Publicado em Novos Estudos Cebrap, n. 26, 1990, e depois no livro O discurso e a cidade (São Paulo, Duas Cidades, 1993). Neste trabalho foi utilizada a edição da Ouro Sobre Azul, de 2010. ↩︎
- Antonio Candido, “Quatro esperas”, p. 139-40, grifo nosso. ↩︎
- Ibidem, p. 145. ↩︎
- Ibidem, p. 159, grifo nosso. ↩︎
- Ibidem, p. 166. ↩︎
- Publicado com o título “O pranto dos livros”, piauí, n. 145, out. 2018, disponível on-line. ↩︎
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Tiago Ferro é escritor, crítico e editor. Autor dos romances O pai da menina morta (vencedor do Prêmio Jabuti 2019) e O seu terrível abraço (2023). Tem doutorado em história social pela USP, com tese sobre a obra de Roberto Schwarz. Colabora regularmente com textos sobre cultura e sociedade para a Folha de S.Paulo e a revista Piauí. Pala Boitempo, publicou Prisão perpétua: e outros escritos (2025).
PARA SE APROFUNDAR NO TEMA
Leia no Blog da Boitempo:
- Antonio Candido indica dez leituras fundamentais para pensar o Brasil
- “A verdade da repressão”, por Antonio Candido
- Roberto Schwarz escreve sobre Antonio Candido
- “Antonio Candido, intérprete do Brasil”, por Flávio Aguiar
Prisão perpétua: e outros escritos, de Tiago Ferro
Entre 2016 e 2024, período de turbulência política, social e econômica não só no Brasil, mas no mundo todo, Tiago Ferro escreveu uma série de textos que perpassam o horror e a distopia contemporânea. Prisão perpétua traz ao leitor 27 escritos que vão de ensaios e intervenções a resenhas e experimentações ficcionais.
“Sem requentar dramas existenciais de um século atrás, mas em um clima que não deixa de ser nauseabundo, estamos diante de uma prosa perspicaz que faz um interessante movimento de báscula entre resignação e inconformismo, vindo de uma voz que é ora de um crítico, ora de um narrador – no qual nunca sabemos ao certo se podemos confiar.”
— Felipe Catalani
“Não surpreendem o som e a fúria da prosa de ensaio reunida nesta Prisão perpétua. Transitando aos trancos e relâmpagos entre o diário de bordo e a montagem, juízos finais e paráfrases, alguma crítica literária e cultural comprimida entre imprecações bíblicas dirigidas à conjuntura de fim de linha em que passamos a viver. Numa palavra, um belo pandemônio.”
— Paulo Arantes, autor de O novo tempo do mundo
O texto que dá título ao livro é uma reflexão sobre sua chegada a Princeton, Estados Unidos, cidade onde o autor passou um ano com sua família por conta de uma bolsa de estudos. A experiência do olhar estrangeiro e periférico perpassa outras passagens da obra. O alcance e o fortalecimento da extrema direita no Brasil e no mundo, a precariedade da vida e do trabalho e o aprofundamento da economia neoliberal são também assuntos recorrentes.
Os livros, a música e outras manifestações culturais marcam parte da obra. Ferro passa pela produção de nomes como Chico Buarque, Bob Dylan, Fernando Pessoa, Roberto Schwarz e Judith Butler e os relaciona a temas contemporâneos.
“Estamos diante de uma forma curiosamente outra, que faz da atomização característica de nosso tempo um método de aproximação com a realidade, emprestando elementos da reflexão subjetiva à reflexão objetiva, nem sempre nessa ordem. Dessa outra forma surgem o risco e o desnível de impressões que funcionam como força ordenadora de textos mais longos, como também explodem pequenos fragmentos herméticos, capazes de exigir do leitor tanto a referência teórica quanto a vivida, para o complemento dos recortes”, escreve Nathalia Colli no posfácio.


Margem Esquerda #44 | Evangelho
Nos últimos anos, o tema da religião tem comparecido cada vez mais nos discursos de esquerda, seja como enigma, lamentação ou bode expiatório — ou, ainda, pelas suas afinidades eletivas com os traços apocalípticos da conjuntura global. Partindo do mote durkheimiano de que “a religião é coisa eminentemente social”, o dossiê de capa desta Margem Esquerda investiga o fenômeno religioso e sua relação com a política no Brasil para além dos chavões e lugares comuns condescendentes. A entrevistada da edição é a cientista social Maria Lygia Quartim de Moraes, figura importante do marxismo feminista brasileiro. Em seu tom caracteristicamente ácido e bem humorado, ela repassa sua intensa trajetória política e intelectual e não mede palavras para comentar os impasses e desafios da esquerda no Brasil. A edição ainda traz artigos de fôlego sobre Malcolm X, Clóvis Moura, Fredric Jameson, Paulo Arantes e Antonio Candido, além de um erudito roteiro de estudos sobre Luís de Camões elaborado por ninguém menos que José Paulo Netto. Na seção de homenagens, prestamos tributo a Beatriz Sarlo, Michael Burawoy e Paula Vaz de Almeida. O artista convidado desta edição é Sérgio Romagnolo; a poesia é de Amiri Baraka.
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“A matéria nacional é nossa tarefa histórica.” Assim insiste nosso maior crítico literário marxista na entrevista que abre esta edição da Margem esquerda. Aos 84 anos, Roberto Schwarz é categórico: mesmo em um cenário de aguda desagregação social como o nosso – sepultados o desenvolvimentismo ingênuo e os sonhos de socialismo em um só país – a formação do Brasil segue sendo nosso problema fundamental, quase como uma “herança maldita”. Em conversa com Fabio Mascaro Querido, ele discute os rumos da tradição crítica brasileira na atualidade, e fala sobre aspectos pouco conhecidos de sua trajetória. O dossiê de capa aprofunda o mergulho nas contradições da “matéria brasileira” (para usar a expressão consagrada pelo crítico), em um conjunto de ensaios das novas gerações da teoria crítica. Reunido por Tiago Ferro, o quarteto investiga, retrabalha e testa alguns dos insights da obra schwarziana em confronto com a atualidade política do país.


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Panorama amplo do pensamento crítico brasileiro dos séculos XX e XXI. Com 27 ensaios de reconhecidos especialistas, Os autores escolhidos compõem um amplo e rico panorama dos pensamentos social e historiográfico nacional da década de 1920 até o começo dos anos 1990, alguns dos quais muito pouco discutidos em outras obras do gênero. A seleção traz alguns pensadores já clássicos, mas em abordagens inovadoras, como Antonio Candido, Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, além de figuras muitas vezes esquecidas, proporcionando uma análise inovadora e abrangente da história e cultura no Brasil.
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