“Afinal, quanto vale a música?”

Disponibilidade do Spotify no mundo, desde dezembro de 2022. Imagem: WikiCommons.
Por Marcos Dantas
Com essa pergunta, o encarte Eu& do jornal Valor Econômico, na sua edição de 11 de abril de 2025, iniciava o texto da interessante reportagem “Nota por nota”, assinada por Julio Maria. O tema abordado merece discussão teórica e também política — duvido que, nos termos do marxismo comumente divulgado, alguém possa responder quanto vale, afinal, a música.
A questão, porém, é central para entendermos a lógica de acumulação do capital-informação contemporâneo. A produção musical é um entre vários segmentos de trabalho de uma ampla e diversificada indústria — a indústria cultural — que, hoje em dia, movimenta diretamente 3,1 % do PIB mundial, concentrando 6,2% de todos os empregos1 e, indiretamente (se considerarmos todos os seus efeitos multiplicadores) movimenta praticamente todo o atual processo de reprodução ampliada do capital.
A matéria do Eu& descrevia um debate que está acontecendo nos meios musicais brasileiros envolvendo autores e intérpretes. Para que algum cantor ou cantora possa gravar uma canção que não seja de sua própria autoria, precisa pedir autorização a quem a compôs — que, por sua vez, pode concedê-la ou não. Caso libere a regravação, o compositor ou compositora tem o direito de cobrar uma “taxa de fixação” conforme uma prática de mercado estabelecida e aceita, no Brasil, desde os anos 1960. Ou seja, além de receber a sua parte, regulada por lei, como “direito autoral”, quem detém a autoria de uma música pode cobrar um “extra” para permitir a gravação de sua composição pelos cantores e cantoras.
Geralmente, até pouco tempo atrás, os valores dessas “taxas” eram baixos: entre R$ 200 e R$ 250. De uns tempos para cá, porém, compositores passaram a cobrar algo na faixa dos mil reais, sendo que os mais “estrelados” se dão ao direito de cobrar muito caro: Caetano Veloso, por exemplo, conforme confirma nessa reportagem sua esposa e empresária Paula Lavigne, cobra R$ 4 mil. Ela decreta: “Os artistas precisam colocar esses valores também no orçamento de seus projetos”.
Se tais “taxas” afetam qualquer intérprete, afetam muito mais os jovens iniciantes que, por óbvio, para se fazerem ouvir precisam colocar no repertório alguma canção já reconhecida e querida pelo público. É desse conflito que trata a reportagem, ouvindo tanto os representantes, isto é, os empresários, dos cantores quanto os representantes, isto é, os empresários, dos autores, como é o caso de Lavigne.
Só que a pergunta inicial permanece: “quanto vale a música?”
Paula Lavigne dá a pista:
“Há um inegável peso na obra do artista consagrado, e uma música regravada por um intérprete iniciante pode ter um impacto econômico incalculável. Isso tem um valor, e o autor da obra seria a única pessoa apta a decidir sobre tal cifra. Se Gilberto Gil achar que ‘Expresso 2222’ vale R$ 20 mil para entrar na vida de um cantor iniciante ou não (aqui o valor é só um exemplo), é o que ela valerá.”
Esse pode ser o (suposto) preço de uma obra de Gilberto Gil, mas no “fantástico mundo do sertanejo” (as palavras são de Julio Maria), as quantias são estratosféricas: alguma “dupla sertaneja” chega eventualmente a pagar R$ 200 mil ao compositor por uma canção de potencial sucesso; retorno garantido pelo que vai cobrar depois, nas apresentações em feiras, ou receber pela venda de discos ou audição em streaming.
A música do Caetano “vale” 4 mil; a do Gil, 20 mil; a de um sertanejo, 200 mil. E, segundo o crítico musical José Teles, ouvido pela reportagem, “quase ninguém mais grava Ary Barroso, Capiba, Luiz Gonzaga, Ataulfo Alves e Caymmi, porque fica mais caro pagar às editoras do que a estúdios e músicos”.
Aparece aí um terceiro personagem, entre os autores e os intérpretes: o (pode ser a) empresário, denominado “editor”. Se formos usar a linguagem típica de O capital de Karl Marx, trata-se do “capitalista individual”. De fato, ao longo de toda a reportagem, não são os artistas — sejam os criadores, sejam os intérpretes — que falam, mas os empresários, a exemplo da Paula Lavigne, ou seus porta-vozes, como advogados ou dirigentes de associações de “produtores”, “editores”, “gravadoras”.
A justificativa para aquele forte aumento no preço das “taxas” é o crescimento da reprodução por streaming. Compositores e intérpretes, hoje em dia, recebem quase nada com a venda de discos, pois quase não são mais vendidos discos. Por sua vez, plataformas como Spotify pagam muito pouco, argumenta Paula Lavigne. A plataforma se defende: “no caso dos compositores, nos últimos dois anos, cerca de 4,5 bilhões de dólares foram repassados do Spotify para os detentores de direitos autorais — que representam os compositores”. Conforme deixa claro o Spotify, os “detentores dos direitos autorais” são os “representantes” dos compositores. Pensava-se que seriam os próprios artistas…
Não. Num passado já um tanto remoto era o artista quem negociava pessoalmente a sua própria obra, fosse ela uma peça musical, um quadro, um romance. Como, hoje, o artista produz para o mercado, ele aceita alienar sua obra para um capitalista (o “editor”, o “gravador”, o “galerista”) que cuidará da sua produção e distribuição. Forma-se aí uma cadeia produtiva constituída por alguns intermediários que, com base no “direito autoral”, vão se apropriar do mais-valor do produto do trabalho do artista. Este recebe um percentual do preço total obtido pela sua obra no mercado (vendida nas lojas ou no streaming), mas esse preço embute outras rendas apropriadas pelas partes intermediárias.
Aqui se encontra o ponto de partida de uma investigação com base na teoria e método da economia política. Comecemos pela mercadoria. Segundo Marx,
“A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer. A natureza dessas necessidades — se, por exemplo, elas provêm do estômago ou da imaginação — não altera em nada a questão.”2
Música ou qualquer outro objeto artístico pode ser incluída na definição de “imaginação”. Porém, o seu valor de uso, por isso mesmo, não diz respeito ao seu suporte físico — seja disco, seja um iPhone pelo qual se tenha acesso à plataforma Spotify. A utilidade reside no prazer, na emoção, no gosto de quem usufrui da música. Se quisermos definir isso como “mercadoria” seria necessário repensar o próprio conceito de mercadoria.
No seu conceito clássico, mercadoria é um objeto que se desgasta com o tempo. Marx emprega a palavra “aniquilar” para se referir a uma das características do consumo de mercadorias. Algumas, como os alimentos, são “aniquiladas” assim que consumidas. Outras, como roupas ou máquinas, podem levar tempos maiores para terem seus valores de uso “aniquilados”. Já o prazer ou emoção da audição de uma música (ou qualquer outra obra de arte) nunca se esgota: normalmente, ouvimos a mesma música muitas e muitas vezes, sem falar de obras compostas há décadas, até séculos atrás. Não se trata de um produto esgotável, pelo contrário: a cada vez que ouvimos um disco, não estamos propriamente “consumindo” o disco (no sentido de “aniquilar”), mas estamos reproduzindo o disco. Alguém pode dizer, “o disco estraga”. É possível, mas a música — seu real valor de uso — pode ser reimpressa e reimpressa; também pode passar de um tipo de suporte (disco) para outro tipo de suporte (streaming) sem perder seu valor de uso — o prazer, a emoção de escutá-la. Já o bife que eu comi hoje no almoço não pode ser recomido…
Decididamente, estamos falando de um valor de uso que não encontra definição no conceito clássico de mercadoria. Este conceito se refere a produtos do trabalho humano que se desgastam entropicamente, ao longo do tempo (maior ou menor) de seu efetivo consumo. Já a música e outros objetos cujos valores de uso são basicamente estéticos são produtos de trabalho humano que negam a entropia — podemos denomina-los neguentrópicos.
Embora sem empregar exatamente esses conceitos oriundos da teoria da informação e da física termodinâmica, economistas mainstream, a exemplo de Kenneth Arrow3 ou Joseph Stiglitz4 têm procurado entender o funcionamento de uma economia que, nos termos neoclássicos, precisa lidar com um “objeto” inapropriável exatamente porque inesgotável: a informação. O mesmo interesse não se observa no campo marxiano, onde, apesar das suas dimensões econômicas e também ideológicas, todo esse amplo setor mobilizador de trabalho e produtor de valor segue pouco investigado, daí que siga também sem alguma formulação política mais aprofundada e consistente. É preciso entender que, no capitalismo atual, cultura não é um mero tópico “superestrutural” (se é que algum dia o foi), mas se encontra no próprio cerne dos processos de valorização e acumulação de capital.
Enquanto para os neoclássicos a informação deve ser um fator neutro nas suas formulações, pois a percebem apenas nas suas aparências de “notícia”, “mensagem”, “documento”, “comunicação”, “música”, “livro” etc.; numa elaboração marxiana, a informação será função de trabalho e tempo de trabalho.5 A música, por exemplo, requer não só inspiração, mas também um certo esforço físico e mental para transpor, para o papel ou algum outro meio de registro, a ideia que surge na mente do autor, durante algum tempo maior ou menor de tentativas, erros, experimentações. Como sabe qualquer pessoa empenhada em criação, toda criação requer 5% de inspiração e 95% de transpiração… Também o sabia Marx: “Os trabalhos efetivamente livres, p. ex., compor, são justamente trabalhos ao mesmo tempo da maior seriedade e do mais intenso esforço”.6
Uma vez a idéia seja posta num primeiro suporte adequado à sua divulgação, ainda será necessário reproduzir esse suporte para que a ideia possa chegar ao público ao qual se destina. Aqui entra em cena o capitalista editorial: ele detém ou tem acesso aos meios industriais de reprodução e, também, detém ou tem acesso aos meios de distribuição, isto é, os meios de transporte e pontos de venda. Incipiente no século XIX, ainda limitada ao economicamente inexpressivo mercado de livros, essa indústria se expande e se consolida no século XX, dividindo-se em diferentes ramos conforme as características de cada forma de produto: a música, o filme, o livro e outros impressos. Todos esses ramos extraem suas rendas dos direitos autorais. O “preço final” do disco, da bilheteria de cinema, do livro na livraria, remunera uma longa cadeia de valor, inclusive os muitos empregos aí gerados, cabendo a menor parte — descontadas as “margens de lucro” dos diversos intermediários — à remuneração do trabalhador que deu origem a todo o circuito: o compositor, cantores e cantoras, demais músicos; artistas de cinema; autores(as) de livros etc.
Porém, como vimos, um compositor de “sertanejo” pode receber R$ 200 mil; o Gilberto Gil, R$ 20 mil; a maioria R$ 1.000… Do mesmo modo, uma coisa é o Paulo Coelho; outra coisa é alguém que escreve e não faz tanto sucesso… Volta-se à pergunta: “quanto vale a música?”
Para começar, esse valor não pode ser medido em “tempo social médio de trabalho”. O tempo de criação não é mensurável, nem equalizável. Esse tempo podia ser ignorado por Marx, seja porque, à sua época, o trabalho artístico não estava ainda, de fato, inserido no circuito do capital; seja porque, na indústria fabril, ainda não havia separação, como há hoje, entre os trabalhos de projeto e desenvolvimento de algum produto (a cargo de cientistas, engenheiros, outros técnicos de formação superior etc.) e os de fabricação e montagem final (a cargo dos técnicos e operários fabris). Nesta nova e mais avançada etapa do capitalismo na qual o tempo de trabalho de criação (inclusive de produtos industriais) não pode mais ser ignorado no exame dos processos de trabalho e valorização, entender como esse trabalho informacional produz valor e como esse valor é apropriado torna-se uma questão teórica e política fulcral.
Vimos que, para Paula Lavigne, o autor da obra é o “único” capaz e autorizado a dizer quanto ela “vale”. Se for assim, eu acho que meu livro, editado pela Boitempo, vale 1 milhão de reais… Piada! Por óbvio, não é isso… O real valor (sem confundir valor e preço como reza a boa Economia Política) é determinado por algo bastante aleatório, que pode ser designado pela palavra “sucesso” ou, mais precisamente, pela expressão audiência.7 Então, o autor de estilo sertanejo, em que pese a miséria melódica e poética desse produto se comparada a qualquer canção esteticamente rica do Gil, pode cobrar 10 vezes mais do que o bardo baiano porque sua audiência é milhares de vezes maior, e a distribuição da sua canção, na forma de shows, discos ou streaming, conseguirá obter rendimentos monetários milhões de vezes superiores.
Esse valor é função de um duplo trabalho: de um lado, o artista; do outro, a audiência ou público. O público canta, dança, se emociona, usufrui, isto é, reproduz, como dito acima, a obra do artista. É um processo inerente a qualquer relação informacional. O valor não se realiza na troca, como na mercadoria, mas na interação, na comunicação ou compartilhamento em algum ambiente social, do produto resultante do trabalho informacional. Na troca, algo é alienado para que se obtenha algo. O produtor de leite se desfaz de dois litros de leite em troca de um quilo de arroz, do qual o produtor de arroz também se desfaz. Para tornar a troca mais fácil e simples, a humanidade inventou o dinheiro, um terceiro objeto que representa os valores a serem trocados. Mesmo assim, se compro algo, levo este algo comigo, mas deixo o meu dinheiro com quem me vendeu.
Ao contrário, no caso de um artigo como este que estou escrevendo, muitas pessoas vão lê-lo, se apropriar de seu conteúdo em função de seus interesses e finalidades, sem que eu fique com nenhum neurônio a menos devido a essa “transferência”. Nem mesmo o texto original “desaparecerá” da memória do meu computador. O texto está sendo compartilhado com seus possíveis leitores que nada estarão dando em “troca” do tempo que despendi escrevendo-o , além, talvez, de algumas críticas positivas ou negativas. Essa propriedade de compartilhamento de qualquer produto do trabalho informacional (tratando-se dos neguentrópicos, não dos entrópicos) leva os economistas mainstream a defini-los como “bens não rivais”. Uma vez que, para efeito de apropriação capitalista, os “bens” precisam ser “rivais”, os economistas têm sempre alguma dificuldade para lidar com eles…
Em princípio, a propriedade de um “bem não rival” deveria ser comum. Se o valor é compartilhado, caso seja precificado, o preço também deveria ser compartilhado… Esse preço seria “zero”! Porém, alguém fez o trabalho de criação (inspiração + transpiração): ocupou seu tempo em produzir algo para ocupar prazerosamente o tempo do seu público. Sem dúvida, merece ser remunerado por isso, merece fazer da ocupação desse tempo um meio de vida. Quanto vale esse tempo?
A ideia do “copyright” e sua correlata “patente”, ou “propriedade intelectual”, nasceu daí: a sociedade (capitalista), desde o século XVIII, aceita remunerar o tempo de trabalho de criação, devendo o criador compartilhar com ela, a sociedade, o produto de sua criação. Entenda-se que a criação nunca é isolada. O criador recebe da própria sociedade, das suas determinações culturais, inúmeras influências e sugestões das quais extrairá os elementos inovadores da sua obra. Ele se apropria do conhecimento social assim produzindo algo novo, e devolve esse produto ao conhecimento social que, deste modo, é também enriquecido e valorizado. Em razão de seu tempo específico de trabalho que enriquece a cultura comum, o criador, sem dúvida, merece ser remunerado. Quanto?
Como escreveu Kenneth Arrow num artigo clássico, referindo-se principalmente à invenção industrial, mas numa lógica aplicável a toda criação artística,
“numa economia socialista ideal, a recompensa pela invenção seria completamente separada de qualquer encargo para os utilizadores da informação […] Considerando toda a discussão anterior, conclui-se que, para uma alocação ótima à invenção, seria necessário que o governo ou alguma outra agência não orientada por critérios de lucros ou prejuízos financiasse a pesquisa e a invenção. De fato, isso já acontece até certo ponto.”8
Porém, numa sociedade capitalista real, na qual predomina a busca individualista de vantagens, não os acordos socialmente justos em torno da distribuição da riqueza, a “propriedade intelectual” torna-se algo similar à “propriedade da terra”: uma fração do conhecimento social, porque obra de um criador, embora produzida a partir do conhecimento comum e cujo valor só se realiza se compartilhada, é “cercada” pelo detentor da “propriedade” e só será acessível à sociedade se esta aceitar pagar o “preço” cobrado pelo seu criador.
Assim como a renda da terra pode ser diferenciada conforme diversos fatores examinados por Marx na seção 6 do Livro 3 d’O capital, a renda informacional também poderá ser diferenciada conforme vários fatores. Como vimos, o “preço” do compositor sertanejo, apesar dos pesares, é bem superior ao que poderia cobrar alguém do padrão Gilberto Gil. Esse preço, embora, no fundo, arbitrário (“se o artista acha que é o que vale, é o que valerá”), é função do capital simbólico do artista — nos termos de Pierre Bourdieu9 —, o que, por sua vez, é no limite função da audiência. A atração de público, além das vendas diretas, produz vários outros efeitos multiplicadores em termos de consumo de mercadorias. O show vende bebidas, brindes e, não menos importante, compõe os processos de reprodução ampliada da indústria eletro-eletrônica (aparelhos de TV, celulares, torres de transmissão etc.). O “best seller” sustenta livrarias, inclusive nos aeroportos, logo todo o processo de produção de livros, a começar pelas fazendas de celulose e os muitos empregos no caminho.
Nada está mais presente, hoje em dia, nessa lógica de reprodução do capital que o espetáculo esportivo, sobretudo o futebol. No Brasil, 55 % dos atletas profissionais masculinos ganham, por mês, o equivalente a um salário mínimo e 33%, até R$ 5 mil. Só 0,003% ganham acima de R$ 50 mil e contam-se nos dedos da mão os que recebem acima de R$ 500 mil.10 Estes, porém, transmitem toda a imagem “glamurosa” da profissão e levam centenas de crianças e jovens, sem o mesmo talento, a também se imaginarem futuros milionários. Essa minoria, graças a seus méritos, atrai audiência para os jogos nos quais participam, jogos estes assistidos, pela televisão, por milhões de pessoas em todo o mundo. Essa audiência atrai publicidade; essa publicidade movimenta o consumo capitalista de indústrias e serviços — por isso, as competições esportivas são compradas e monopolizadas por um punhado de grandes corporações mediáticas globais (Time-Warner; Disney; a Globo, no Brasil, etc.), controladas, por sua vez, pelo capital financeiro reunido em corporações gestoras de investimento (Vanguard, Fidelity, BlackRock, State Street etc.). Seus lucros bilionários, apropriados por grandes acionistas, têm origem no trabalho daquela minoria de atletas que acumulou capital simbólico suficiente para cobrar caro pelo espetáculo que oferecem.11
O trabalhador artista (do músico ou ator ao atleta esportivo) aliena sua “propriedade intelectual” a algum “representante” (empresário). Este capitalista negocia tal “direito” com algum elo seguinte numa cadeia de intermediários, por um “preço” arbitrado com base no capital simbólico do artista. Na ponta final da cadeia encontra-se o público: na casa de espetáculos, na sala de cinema, na “arena” esportiva, mas a imensa maioria, milhões de pessoas, ocupa o tempo de seu corpo e mente à frente de um terminal de televisão ou aparelho celular. O verdadeiro “dono” do espetáculo, por isto, é o grupo midiático que faz as imagens e sons chegarem a algum terminal de TV ou celular, seja a Globo, a Claro, o YouTube, o Spotify, a Amazon etc. São os grandes “bilheteiros” do negócio.
Além de recolher a renda que vai remunerar toda a cadeia a montante, até chegar no artista, esses conglomerados essencialmente financeiros, controlando os meios de transmissão e recepção, cumprem também outro importantíssimo papel: asseguram que o produto do trabalho artístico não possa ser reproduzido a custo zero. Nos tempos (ainda não de todo superados) do disco de vinil, da película cinematográfica, do livro impresso, a reprodução e distribuição do produto exigia instalações fabris e redes de distribuição cujos altos custos em equipamentos (capital fixo) e mão de obra (capital variável) só podiam ser bancados por investidores dotados de elevado capital monetário inicial. A tecnologia digital derrubou essas “barreiras à entrada”. Houve, inclusive, um momento, nos anos 1990, quando muita gente boa acreditou que a reprodução e acesso “gratuitos” à música e ao audiovisual graças a protocolos digitais de compressão e de transferência de arquivos (MP3, BitTorrents), estavam abrindo caminho para a própria derrocada do capitalismo. Ingenuidade! A indústria se reinventou: sai o disco, seja vinil ou CD, entra o streaming. Sai o livro, entra o kindle. Saem os equipamentos de gravação doméstica, entra a “nuvem”.
Você não compra mais um disco ou um livro. Você obtém o direito de acesso ao disco ou ao livro, ou ao filme na Netflix. Se eu “compro” um livro para baixar no “kindle”, eu não posso emprestar esse livro, ou doá-lo posteriormente para uma biblioteca, como posso fazer com o livro físico que comprei na livraria. A informação (valor de uso do livro, da música etc.) num suporte digital pode ser reproduzida a custo no limite de zero sem que, devido àquela propriedade aditiva da informação explicada mais acima, aquele que a compartilha perca também a sua “propriedade” sobre ela. Isso não era possível no caso do objeto-livro ou do objeto-disco, devido às propriedades físico-químicas e anatômicas destas formas de suporte.
Porque o compartilhamento “gratuito” da informação registrada tornou-se possível com o objeto digital, o capital resolveu este seu problema introduzindo tecnologias que acorrentam o valor de uso aos suportes de transmissão (redes de telecomunicações) e de recepção (aparelhos terminais). Se você quiser emprestar o livro, tem que entregar o kindle junto… Muito apropriadamente, o mundo empresarial denomina “jardins murados” (walled gardens) a essas novas formas de “cercamento”, não mais da terra, mas do conhecimento. Formular uma política que garanta a justa remuneração social do trabalho artístico, sem, porém, fornecer extraordinário mais-valor para a acumulação capitalista, pode parecer algo ainda distante, ou mesmo difícil de ser pensado nas condições políticas e culturais da nossa sociedade atualmente. Uma discussão sobre “quanto vale a música?”, nos temos em que é colocada, parece assim tão natural quanto um dia de céu azul — não mera aparência de relações capitalistas que são rentistas na sua essência. Quaisquer que venham a ser as possibilidades de, em algum momento, se começar a formular alguma política visando construir uma nova, justa, democrática sociedade — que haverá de ser, necessariamente, a sociedade do livre acesso ao conhecimento —, antes de mais nada será necessário entender a lógica capitalista que preside negociações em que todos estão gritando e ninguém parece ter razão. Ou melhor, por enquanto terá razão o mais forte…
Notas
- ONU News, Cultura e criatividade representam 3,1% do PIB Global e 6,2% de todos os empregos, 21/04/2023, acessado em 18/04/2025. ↩︎
- Karl Marx, O capital: Livro 1, O processo de produção do capital, São Paulo: Boitempo, 2013, p. 157. ↩︎
- Kenneth Arrow, (1977 [1962]). Economic Welfare and the Allocation of Resources for Invention. In The Rate and Direction of Inventive Activity: Economic and Social Factors, edited by the National Bureau Committee for Economic Research, Princeton, NJ: Princeton University Press, 1977 [1962], p. 609-626. ↩︎
- Joseph Stiglitz, (2000). The Contribution of the Economics of Information to Twentieth Century Economics, The Quartely Journal of Economics, v. 115, n. 4, 2000, p. 1441-1478. ↩︎
- Marcos Dantas, Denise Moura, Gabriela Raulino, Larissa Ormay. O valor da informação: de como o capital se apropria do trabalho social na era do espetáculo e da internet, São Paulo: Boitempo, 2022. ↩︎
- Karl Marx. Grundrisse, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 509. ↩︎
- Dallas W. Smythe, Communications: Blindspot of Western Marxism. Canadian Journal of Political and Social Theory n. 1, v. 3, 1977, p. 1-27. ↩︎
- Kenneth Arrow, op. cit., p. 623, tradução minha – MD. ↩︎
- Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Perspectiva, 1982. ↩︎
- EY/CBF. Impacto do futebol brasileiro, 2018, acesso em 18/04/2025. ↩︎
- Denise Moura, “Capital financeiro e espetáculo: o controle do futebol por corporações mediáticas”, in Marcos Dantas et alii, op. cit. ↩︎

O valor da informação: de como o capital se apropria do trabalho social na era do espetáculo e da internet, de Marcos Dantas, Denise Moura, Gabriela Raulino e Larissa Ormay
Com a ótica da teoria marxiana do valor-trabalho, revela como a informação se tornou mercadoria fundamental nas relações de produção e consumo. Explora os aspectos da propriedade intelectual, trabalho não remunerado em plataformas digitais e a produção de valor nos campeonatos de futebol.
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Marcos Dantas é professor titular (aposentado) da UFRJ, integra o Conselho de Administração do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.Br) e integrou por nove anos (três mandatos) o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br). É autor de A lógica do capital-informação (Ed. Contraponto, 1996; 2ª ed. 2002) e (com D. Moura, G. Raulino e L. Ormay) de O valor da informação (Boitempo, 2022).
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