A sustentabilidade cenográfica de Lula 3

Foz do Rio Amazonas no Oceano Atlântico. Imagem: Coordenação-Geral de Observação da Terra/INPE via Wikimedia Commons
Por Bruno Araújo
A agenda ambiental ganhou força durante o governo Bolsonaro e passou a ser um dos elementos de diferenciação política entre os presidenciáveis em 2022. Nesse sentido, as peças publicitárias de Lula durante a campanha prometiam uma gestão alinhada às mais atuais preocupações ambientais e climáticas como contraponto ao negacionismo bolsonarista. Um trailer lindo que prometia ser sucesso de bilheteria.
A posse, em janeiro de 2023, reforçou essa expectativa: na ausência do ex-presidente, quem passou a faixa para Lula foram sete brasileiros e brasileiras. Lula seria empossado pelo povo brasileiro. Entre essas pessoas estava Cacique Raoni, importante liderança indígena e símbolo do (tardio) encontro pacífico entre o Estado Brasileiro e as populações originárias e tradicionais desta terra. E foi além! Marina Silva e Sônia Guajajara assumiram os ministérios do Meio Ambiente e Clima e de Povos Tradicionais, respectivamente.
Empolgado com a chance de encarnar o personagem de líder global, Lula convenceu a ONU e os outros países do mundo a trazer a Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas (COP) para Belém, na Amazônia brasileira. Que roteiro bem elaborado, com um arco do herói bem definido: Lula vence Bolsonaro em uma árdua batalha e reconquista o amor do mundo. As luzes se voltam para esse elenco simbólico, cuidadosamente posicionado para o mundo ver. Prometia ser uma peça bem dirigida, com figurino sustentável e roteiro aprovado pela opinião pública internacional, não fosse a mudança na Direção Geral da peça estaríamos celebrando ansiosos a contagem regressiva de vinte domingos para a COP 30.
No teatro, cenografia é a arte e a técnica de criar e realizar o espaço cênico, incluindo todos os elementos visuais que compõem a cena, como cenário, iluminação, adereços e figurinos. O objetivo é ambientar e ilustrar o espaço/tempo da peça teatral, materializando o imaginário e aproximando o público da representação. Portanto, o que o público vê se encerra na cenografia montada no palco, mas hoje eu e você, leitora e leitor, vamos nos aprofundar nos bastidores e roteiro do Lula 3.
Se por um lado Lula construiu um cenário verde e sustentável, o presidente escalou protagonistas no mínimo contraditórios. Basta sair da coxia para encontrar outro espetáculo, muito menos interessante: o ministro de Minas e Energia pressiona o IBAMA pelo licenciamento da perfuração de petróleo na Foz do Amazonas; o Plano Safra injeta bilhões no agronegócio que devasta (quatro vezes mais do que o valor destinado para agricultura familiar); o próprio governo colabora para aprovar o PL da Devastação; a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) realiza um leilão de petróleo e vende novos blocos de exploração por todo o país, inclusive na região da Foz do Amazonas; o governo articula para o Brasil ser sede de data centers famintos por água e energia… Nos bastidores dessa trama, o que impera é o velho roteiro do lucro acima da vida.
Essa desconexão entre o cenário que pinta o governo, o que se apresenta e o que seria realmente necessário para uma transição energética justa e mitigação climática tem nome: sustentabilidade cenográfica — uma política ambiental de fachada, que maquila destruição com discursos progressistas. É o greenwashing de Estado, um ambientalismo de vitrine, sofisticado e estratégico, que confunde a plateia e desacredita a luta climática, resultado de uma estratégia falida de conciliação de classes.
Em entrevista recente ao podcast Mano a Mano, o presidente afirmou ser favorável à transição energética, com a ressalva de que “o mundo não está preparado para isso agora”, caindo em um fatalismo petrolífero que serve de alavanca para a expansão dos poços de petróleo no país, incluindo na Foz do Amazonas. Lula também falou sobre a necessidade de exploração de petróleo como mecanismo financeiro para a tal transição, e afirmou que a Petrobras não possui nenhum acidente em sua história — aqui ele foi longe demais.
A fim de desfazer alguns mitos sobre a crença de que petróleo é riqueza, eu trago 11 reflexões que atestam o contrário:
1. O saldo final da exploração do petróleo, contabilizando suas riquezas e seus impactos, é devedor: uma pesquisa publicada na revista Nature estima que as emissões de gases de efeito estufa de 111 companhias petrolíferas e de gás tenham causado, coletivamente, US$ 28 trilhões em prejuízos relacionados somente ao calor extremo (há outros danos) entre 1991 e 2020.1
2. Lançando um rápido olhar para o Brasil, percebemos que a Petrobras obteve um lucro de R$ 36,6 bilhões em 2024, enquanto a estimativa dos danos causados pelas fortes chuvas (mais frequentes por conta da mudança climática) no Rio Grande do Sul soma R$ 90 bilhões.
3. É possível que até 85% da extração planejada pela Petrobras não gere lucro. Isso porque a produção não será rentável em um cenário climático que não ultrapasse 1,5ºC de aumento médio da temperatura global, por falta de demanda. Segundo o estudo das organizações internacionais, os empreendimentos da Petrobras só gerarão lucro se a rota da descarbonização mundial prevista pelo Acordo de Paris falhar e as temperaturas globais aumentarem 2,4ºC ou mais. E não é isso o que queremos, não é mesmo?
4. Em 2024, o estado do Rio de Janeiro e os municípios fluminenses receberam, juntos, R$ 44 bilhões, o que equivale a 75% da renda do petróleo distribuída para todo o país. O estado concentrou, sozinho, 82,6% da renda distribuída às unidades federativas, enquanto seus municípios concentraram 66,23% da renda distribuída às cidades. E mesmo assim, o Rio de Janeiro é o estado que paga o pior salário do Brasil para seus professores, privatizou Companhia de Água e Esgoto (CEDAE) alegando falta de recursos para gerenciá-la, e está em regime de recuperação fiscal.
5. A exploração do petróleo está intimamente ligada à necessidade crescente de energia do sistema capitalista para produção e circulação de uma quantidade cada vez maior de mercadorias e serviços. E a transição energética tem sido encarada pelo setor empresarial e industrial mais como uma nova fronteira energética com potencial de aumentar a capacidade produtiva e menos como substituição da matriz energética anterior (você pode saber mais sobre isso aqui).
6. Dados revelados pela ANP mostram que o Brasil teve, em 2024, um recorde de acidentes envolvendo a exploração de petróleo. Ao todo foram 731 ocorrências, maior valor da série histórica, que começou a ser contabilizada em 2011. Segundo o painel aberto da agência, o maior número tinha sido registrado justamente no ano anterior, em 2023, quando foram contabilizados 718 acidentes. Em 2022 foram 598. Apenas nos primeiros meses de 2025 já houve 115 casos.
7. Em 18 de janeiro de 2000, um duto da Petrobrás que ligava a Refinaria Duque de Caxias (Reduc) ao terminal Ilha d’Água, na Ilha do Governador, rompeu-se antes do raiar do dia, provocando um vazamento de 1,3 milhão de litros de óleo combustível nas águas da baía. A mancha se espalhou por 40km² e o episódio entrou para a história como um dos maiores acidentes ambientais ocorridos no Brasil. O vazamento afetou cerca de 12 mil famílias que viviam da pesca e de atividades ligadas ao pescado. Poucos anos depois, em 2018, ocorreria no litoral do Nordeste o maior derramanento de óleo da história do Brasil, cujos danos ainda hoje não foram reparados.
8. Entre 2019 e 2020, a Petrobras foi responsável por 23 vazamentos de óleo e derivados durante suas atividades, segundo levantamento do Instituto Latino-Americano de Estudos Socioeconômicos (Ilaese) para o Observatório Social da Petrobrás (OSP). Nesse período, foram derramados cerca de 4 mil barris de petróleo, totalizando 631,8 metros cúbicos do insumo. As informações constam no relatório anual de sustentabilidade da estatal.
9. O argumento de que o recurso vindo da exploração desse combustível financiará a urgente transição energética tem se mostrado fajuto, já que apenas 0,16% da renda nacional do petróleo foi direcionada à agenda ambiental e climática em 2024, segundo estudo do INESC.
10. De acordo com o mesmo estudo, apenas 1% da renda foi direcionada ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação via recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Agrava o quadro o fato de que essa pequena parcela é, em sua quase totalidade, utilizada para financiar o “CT – Petróleo”, em detrimento de centros que têm atribuição de pensar inovações tecnológicas orientadas à transição energética e a uma economia livre de petróleo.
11. O Fundo Social, que destina 50% dos royalties da exploração do pré-sal para a educação básica, ainda está longe de ser o trampolim para o salto de qualidade no ensino brasileiro. Em 2015, apenas 10% do montante orçado foi pago até a metade do ano. Ao longo de 2014, apenas 30% foram usados. As projeções apontavam que mais de 84 bilhões de reais oriundos dessa atividade iriam para a educação até 2022, contudo, não foram encontrados dados consolidados sobre o histórico do repasse do Fundo Social para a educação brasileira. A notícia mais recente é a edição de um Medida Provisória do presidente Lula que amplia o escopo de possibilidades de uso do recurso, destinando-o a ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas e seus efeitos, além do enfrentamento das consequências sociais e econômicas de calamidades públicas, infraestrutura social e habitação de interesse social. Segue valendo a obrigação de destinar 50% para educação pública, mas um olhar rápido para a situação das universidades brasileiras me faz perguntar se o montante tem sido suficiente.
Diante disso, nossa tarefa é a de expor a falácia da ideologia fóssil, que tem nos levado à barbárie. Ao mesmo tempo, articular tal crítica com outra mais profunda: a crítica aos limites da própria ideia de desenvolvimento e progresso alinhada a um aumento de produção energética, exploração de trabalhadores e estímulo ao hiperconsumo imerso em uma “lógica absurda e irracional de expansão e acumulação infinitas”. Em outras palavras, como nos alerta Michael Löwy no artigo “A alternativa ecossocialista”, publicado em Tempo fechado: capitalismo e colapso ecológico, uma crítica radical à racionalidade capitalista e “seu produtivismo obcecado pelo lucro a qualquer preço”, que “são responsáveis por levar a humanidade à beira do abismo”, afinal, “a racionalidade da acumulação, da expansão e do ‘desenvolvimento’ capitalistas — especialmente em sua forma neoliberal contemporânea — é impulsionada por cálculos míopes e está em contradição intrínseca com a racionalidade ecológica e a proteção de longo prazo dos ciclos naturais.”2
O mundo real não é palco e a crise climática não espera a próxima cena. Ou desmontamos o cenário de mentira para propor a construção de um novo, ou assistiremos ao colapso se tornar parte da rotina.
Notas
- Entre os maiores responsáveis, segundo os autores do estudo, estão a Saudi Aramco (US$ 2,05 trilhões), Gazprom (US$ 2 trilhões), Chevron (US$ 1,98 trilhão), ExxonMobil (US$ 1,91 trilhão) e BP (US$ 1,45 trilhão). ↩︎
- LÖWY, Michael. A alternativa ecossocialista. In: LUEDY, Laura (org.). Tempo Fechado: colapso ecológico e capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2025, p. 22. ↩︎
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Bruno Araújo é apresentador do podcast Planeta A, geógrafo, mestrando em planejamento urbano com foco em clima, especialista em clima e políticas públicas, militante ecossocialista e criador de conteúdo socioambiental no @brunopeloclima.
NÃO PERCA!
Debate de lançamento de Tempo fechado: capitalismo e colapso ecológico durante a primeira edição da Festa de Aniversário do Marx no Rio de Janeiro, com a presença da deputada federal Talíria Petrone, os autores Eduardo Sá Barreto e Natan Oliveira, e mediação de Bruno Araújo. Confira a programação completa do evento aqui.

LEITURAS PARA SE APROFUNDAR NO TEMA
Tempo fechado: capitalismo e colapso ecológico, organizado por Laura Luedy
Não é de hoje que a ciência faz previsões alarmantes em relação ao cenário ecológico desenhado pelo modo de produção dominante ao redor do mundo. Só mais recentemente, porém, as evidências disso têm se imposto à nossa experiência sensível mais cotidiana. Esta obra, organizada pela socióloga marxista Laura Luedy, traz ao público dez textos inéditos de diferentes pensadoras e pensadores que tratam da questão indo à sua raiz. Suas reflexões vão além das abordagens do ambientalismo mainstream e colocam o dedo na ferida do capitalismo. Afinal, é possível evitar o colapso ecológico planetário sem desmontar o arranjo social que governa nossa relação com a natureza?
Com perspectivas que se complementam e partem de experiências das lutas indígenas, negra, feminista e socialista, os textos que compõe Tempo fechado vão além do diagnóstico e nos apontam caminhos possíveis para atravessar a nebulosa questão da emergência climática. A liderança indígena Alessandra Korap Munduruku inicia o debate refletindo sobre a luta de sua comunidade contra as investidas de grandes empresas e do Estado sobre seus territórios. Michael Löwy nos apresenta o ecossocialismo como um movimento em construção, ao passo que a contribuição pioneira do feminismo socialista para esse movimento é representada pelo texto de Ariel Salleh. Na sequência, Sabrina Fernandes discorre sobre soberania alimentar e resiliência socioecológica, e Maikel da Silveira retrata uma da iniciativas que se aproximam desse paradigma no Brasil, a Teia dos Povos, a partir da perspectiva de uma de suas lideranças.
As continuidades entre as lavouras escravagistas do século XVII, a agroindústria contemporânea e os discursos e práticas nas áreas naturais de proteção integral são o objeto do texto de Guilherme Fagundes. Já João Telésforo escolhe tratar das armadilhas por trás dos chamados investimentos ESG, as finanças ambiental e socialmente sustentáveis, enquanto Jean Miguel se debruça sobre os sentidos do negacionismo climático hoje. Fechando as discussões com o retorno à contribuição de Marx no diagnóstico da relação entre capitalismo e colapso ecológico, Eduardo Sá Barreto defende que essa dinâmica econômica não se conterá ante limites ecológicos ou políticos, seguido pelo texto de Natan Oliveira, que nos apresenta os estudos que Marx fez das ciências naturais.



O capital no Antropoceno, de Kohei Saito
Qual é a relação entre capitalismo, sociedade e natureza? Em O capital no Antropoceno, o filósofo japonês Kohei Saito propõe uma interpretação dos estudos de Karl Marx frente aos problemas ambientais que enfrentamos no século XXI. A mensagem central da obra é que o sistema capitalista dominante, de alta financeirização e busca ilimitada do lucro, está destruindo o planeta, e só um novo sistema, pautado pelo decrescimento, com a produção social e a partilha da riqueza como objetivo central, é capaz de reparar os danos causados até aqui.
Enfrentando o antropoceno, de Ian Angus
Quando começou o Antropoceno? Apesar de o termo se popularizar apenas em meados dos anos 2000, a discussão sobre a presença do homem no mundo e sua intervenção na natureza não é nova. Lançado originalmente em 2016, Enfrentando o Antropoceno, do canadense Ian Angus, é um estudo sobre o impacto do homem na Terra.
Terra viva, de Vandana Shiva
Autora de importantes obras que discutem os ataques ao meio ambiente por grandes empresas e o efeito desastroso de um mau uso do solo, a doutora em física quântica e ativista ambiental Vandana Shiva faz nesse livro uma volta a suas raízes, revendo uma trajetória que acabaria por definir os movimentos em que se engajou. Assim, ela aborda fases como a infância rural vivida na Índia, sua criação na fazenda dos pais em meio às florestas, a educação libertária que recebeu deles, passando pela mudança de vida e de perspectiva que teve ao entrar na faculdade e viver em grandes centros urbanos na Índia e no exterior. Tudo isso culminando na descoberta dos movimentos de luta em defesa da natureza e dos povos nativos e de sua influência na política ambiental mundial.



O solo movediço da globalização, de Thiago Aguiar
Revelação das complexas relações entre a Vale S.A., seus trabalhadores e o meio ambiente. Analisa as operações da empresa no Brasil e no Canadá, explorando questões ambientais e trabalhistas. Um olhar sobre a interseção da destruição da natureza e da exploração do trabalho no setor de mineração.
Abundância e liberdade, de Pierre Charbonnier
Investigação filosófica sobre as raízes do pensamento político moderno e seu impacto na crise ecológica. O autor desafia o paradigma do progresso ilimitado e explora a relação entre a abundância material e a busca pela liberdade. Uma reflexão essencial para a compreensão do presente e do futuro.
Margem Esquerda #42 | Crise ecológica
As intersecções entre marxismo e ecologia estão no centro desta edição da Margem Esquerda. Abrindo o volume, John Bellamy Foster repassa sua trajetória intelectual e política e reflete sobre os desafios do presente em conversa com Michael Löwy, Maria Orlanda Pinassi e Fabio Mascaro Querido. Um dos mais importantes intelectuais marxistas em atividade, em especial por suas intervenções no debate ecológico, Foster avançou como poucos numa compreensão da obra de Marx que não apenas a coloca em diálogo com as abordagens ecológicas mais recentes, como também visualiza as chaves para uma explicação materialista da atual crise ecológica. O dossiê “Marxismo, capitalismo e ecologia”, esquadrinha o problema em quatro ensaios afiados que buscam articular a teoria e prática do ecossocialismo diante de um cenário cada vez mais urgente de crise climática e civilizatória. Organizado por Fabio Mascaro Querido, o dossiê conta com ensaios de Michael Löwy, Luiz Marques, Ana Paula Salviatti, Arlindo Rodrigues e Allan da Silva Coelho.
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