Austeridade, uma serva da ordem do capital
Em "A ordem do capital", Clara Mattei atualiza a crítica marxista e desnuda a lógica do neoliberalismo, destacando que políticas de corte de gastos estão intimamente ligadas ao fascismo.
“Lei e ordem em Lawrence” (Law and order in Lawrence) [1912]. Fonte: Digital Commonwealth
Por Raíssa Araújo Pacheco
Pensar que a guerra em Gaza é uma aberração irracional da história humana pode parecer um caminho preferível, direcionando a culpa para alguma expressão inexplicável do ser humano. Porém, sabemos que essa consideração estaria errada.
O que acontece ao povo palestino é a mais pura e crua manifestação dos princípios lógicos do sistema que rege nossa sociedade. Ou mudamos as coisas agora, ou esse será o destino da humanidade. É o que enfatiza a professora de economia Clara Mattei.
Em seu mais recente livro, A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo, publicado pela Boitempo, a autora esmiúça vários argumentos centrais que moldam a lógica do sistema capitalista, oferecendo uma perspectiva renovada da economia política e do capitalismo de nosso tempo.
Com tradução de Heci Regina Candiani, texto de orelha de Luís Nassif, capa de Maikon Nery e apoio da Fundação Perseu Abramo, a obra analisa o papel do Estado na economia, fundamentando-se em uma abordagem influenciada pela teoria crítica marxista: a crítica do valor. Contudo, há uma visão atualizada sobre como o valor é produzido na contemporaneidade.
A partir de sua ampla e rigorosa investigação de dados de crescimento e decrescimento econômico e de como o valor é produzido e reproduzido nas relações de trabalho e nas trocas de mercado, Mattei defende que este é um conceito central para entender a dinâmica do capital.
Sua argumentação ressalta que o neoliberalismo não é apenas uma política econômica, mas uma forma de reorganizar a sociedade e a economia em torno da lógica do mercado. A guerra é uma consequência sistêmica necessária a essa organização.
O escrito é dividido em duas partes. Na primeira, “Guerra e crise”, Mattei desenvolve seu argumento de como as duas Grandes Guerras e as crises que permearam o século XX abriram terreno para a nova ordem econômica ditada pelo neoliberalismo.
A segunda toma mais páginas e é inteiramente dedicada à questão da austeridade. Começando pela sua “criação” engendrada por tecnocratas internacionais, passando por seus exemplos históricos, com foco na Inglaterra e na Itália – e como em ambos os casos, tal processo abriu veredas para o fascismo –, finalizando com uma demonstração dos cases de “sucesso” da austeridade, ou melhor dizendo, como tais políticas salvaram economias capitalistas quando estas estavam em crise. O resultado: fortalecimento das opressões de classe e desigualdade econômica – a “verdadeira medida de eficácia” da austeridade, como defende a autora.
No entanto, também são vários os exemplos de fracassos das políticas de austeridade, a Grande Depressão, ocorrida na década de 1930, como também a elevação das taxas de juro na Argentina em 2002, após sucessivas crises políticas e econômicas.
Os efeitos desses sucessos e fracassos são vistos nas ruas, com as revoltas e manifestações populares, tanto por melhores condições de trabalho, quanto por melhores condições socioeconômicas.
Seguindo seu argumento, a professora defende que por trás dos objetivos de “salvar a economia”, a austeridade tem um motivo muito mais insidioso: barrar os avanços das conquistas trabalhistas. Lançando uma contra ofensiva que busca salvar o capitalismo e suas relações de produção.
A austeridade é a tônica das governanças alinhadas ao capital, aprofundando desigualdades e precarizando as condições de trabalho. Através de seu estudo profundo e interdisciplinar, Mattei escancara a relação entre austeridade e ascensão do fascismo.
Além disso, a brochura faz uma revisão do neoliberalismo e suas consequências. Enquanto muitos trabalhos discutem o neoliberalismo em termos econômicos e políticos, Mattei analisa como essas políticas transformaram e precarizaram as condições de trabalho e sociais, aprofundando a desigualdade e a exploração.
Uma miríade de ferramentas teóricas são utilizadas para destrinchar como as dinâmicas do capital se manifestam em diferentes esferas da vida econômica e social. Sendo notável a abordagem interdisciplinar da obra, que combina teoria econômica, crítica social e análise política.
Longe de se restringir apenas à crítica, a professora apresenta uma série de alternativas possíveis ao fim do mundo, como a economia solidária e a experimentação de modelos alternativos econômicos que não se baseiem exclusivamente na lógica do mercado, além de priorizarem o bem-estar humano e ambiental, ao invés do crescimento econômico a todo custo.
Uma reforma significativa nas relações de trabalho para combater a precarização e melhorar as condições de trabalho; a integração de preocupações ambientais nas políticas econômicas e a transição para práticas sustentáveis; além da participação democrática nas decisões econômicas e uma economia mais transparente e participativa, também são soluções exploradas para a criação de um futuro mais equilibrado e justo.
Publicado originalmente no site Outras Palavras.
Por mais de um século, diferentes países e governos enfrentaram crises financeiras ao aplicar cortes em políticas públicas e precarizar as relações de trabalho. Embora tenham sido bem-sucedidos em acalmar os credores e o mercado, os efeitos no bem-estar social e econômico da classe trabalhadora foram devastadores. Em tempos de crises e incertezas, a austeridade continua sendo praticada em todo o globo. A ordem do capital, de Clara Mattei, é um estudo profundo e interdisciplinar sobre a relação entre austeridade e ascensão do fascismo.
Voltando ao início do século XX, a economista traça as origens da austeridade no entreguerras na Grã-Bretanha e na Itália, revelando como a autonomia da classe trabalhadora nos anos pós-Primeira Guerra Mundial incentivaram um conjunto de políticas econômicas de cima para baixo que sufocou os trabalhadores e impôs uma hierarquia ainda mais rígida em suas sociedades. Foi quando a austeridade revelou seu principal objetivo, a proteção do capital e a eliminação de todas as alternativas ao sistema capitalista, e foi nesse contexto que a política econômica funcionou como aliada ao fortalecimento do fascismo.
Acompanhe a série sobre A ordem do capital, com Clara Mattei, na TV Boitempo:
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Raíssa Araújo Pacheco é redatora do Outros Quinhentos. Formada em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Assessorou movimentos sociais e entidades envolvidas na pauta de moradia e direito à cidade.
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