Fim da escala 6×1: a hora de Gramsci, a hora da hegemonia
Ato em São Paulo pelo fim da escala 6×1, organizado pelo movimento Vida Além do Trabalho (VAT), em 15 de novembro de 2024
Foto: Bárbara Krauss (@bdebarbarie).
Por Ronaldo Tadeu de Souza
Em seu As antinomias de Gramsci, o historiador e ensaísta inglês Perry Anderson — lendário editor da mais importante revista teórica e política de esquerda da segunda metade do século XX e inícios do XXI, a New Left Review — afirmou que “nos dias de hoje, nenhum pensador marxista posterior ao período clássico é tão universalmente respeitado no Ocidente como Antonio Gramsci. Nem há algum conceito tão livre ou diversamente invocado entre as forças de esquerda do que o de hegemonia que ele tornou de uso corrente”. Eram os anos 1970 quando o autor dos espetaculares Passagens da Antiguidade ao Feudalismo e Linhagens do Estado Absolutista escreveu essas linhas. De lá até os dias atuais, os debates sobre a noção de hegemonia (e sobre o que Gramsci quis ou pode ter querido dizer) somente aumentaram em volume e qualidade. Mas também em equívocos, inexatidões e apropriações arrivistas. Há o “Gramsci” pluralista; o “Gramsci” que sustenta ser a sociedade civil o locus principal das disputas de classe; o “Gramsci” que pensou formas de ampliar as esferas institucionais do Estado; o “Gramsci” não comunista e revolucionário.
Se é ou não possível propor uma variedade de Gramscis (e teoricamente, de meu modesto ponto de vista, não é…), ao menos três são os mais condizentes — talvez os únicos verdadeiramente coerentes — com o pensamento, teoria e ação do sardo: a primeira é a do intérprete dos conselhos de fábricas na Itália nos anos 1910 e 1920; a segunda variedade, a do fundador e construtor do partido comunista; finalmente, temos o teórico e estrategista da hegemonia com vista à conquista do poder do Estado, no contexto dos debates ocorridos na III Internacional até a morte de Lênin. É desnecessário reconstruir nesta intervenção os momentos decisivos da história político-intelectual que conduziram ao conceito estratégico de hegemonia. Todavia, localizar, brevemente, o laboratório histórico1 em que ele foi elaborado é sugestivo para os interesses da atividade prática nas atuais circunstâncias de nossas querelas políticas, sobretudo, no horizonte de combate à escala 6×1, iniciada pelo político e intelectual orgânico, Rick Azevedo (do PSOL), e que deputados, partidos e organizações radicais e revolucionárias de esquerda estão encampando — transformando-a em demanda objetiva dos que trabalham.
Sem muita precisão concernente ao momento em que Gramsci começou a redação dos seus Cadernos do cárcere, é factível sugerir que as advertências do declínio da onda expansiva revolucionária europeia2 fizeram com que ele e outros teóricos comunistas passassem a ponderar sobre a conformação de novos critérios políticos com vistas à revolução e à tomada do poder de Estado. Esses revolucionários e revolucionárias estavam refletindo e agindo na trilha das reorientações dialéticas de Lênin no âmbito dos congressos da III Internacional Comunista. Era necessário viver o pensamento marxista em ato3 — e, portanto, foi assim que sempre se postaram. Era necessário tensionar as noções gerais da luta de classes no próprio evento dinâmico da interrelação entre as classes. Esse contexto foi decisivo para Gramsci produzir os Cadernos e a nova concepção de hegemonia. Em outras palavras, Gramsci renovaria com densidade teórica (implacável) o conceito e prática da hegemonia como lugar privilegiado da ação dos revolucionários comunistas. Ora, a noção gramsciana de hegemonia era, portanto, para falar com Nicola Badaloni e Peter Thomas, um “método de trabalho político” pelo qual a classe trabalhadora (e suas organizações) poderiam exercer predominância sobre o conjunto da sociedade: vislumbrando o porvir imediato da transformação revolucionária e da conquista do Estado burguês.
O que, então, Gramsci teorizava e dizia por aqueles anos, e que pode acender uma centelha imaginativa no presente combate pelo fim da escala 6×1? E para além dessa pauta, iluminar outras exigências de quem vende sua força de trabalho para o capital (particularmente aquelas e aqueles de pele preta)?
No “Caderno 13”, assim está escrito: “o príncipe moderno é ao mesmo tempo o organizador e a expressão ativa e atuante, e reforma intelectual e moral — deveriam constituir a estrutura [ou método] do trabalho. Os pontos programáticos concretos deveriam ser incorporados na primeira parte, isto é, dramaticamente […] [de modo que para] haver reforma cultural, ou seja, elevação civil das camadas mais baixas da sociedade, […] uma anterior reforma econômica e uma modificação na posição social e no mundo econômico”, faz-se necessária a ação prática das forças (organizações, movimentos, partidos, intelectuais engajados e orgânicos) de esquerda radical (o Príncipe Moderno), pois “é por isso que uma reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de reforma econômica; mais precisamente, o programa de reforma econômica é exatamente o modo [e o momento concreto] através do qual se apresenta toda reforma intelectual e moral”.4 Com efeito, a formulação teórica do “Caderno 13” adverte que, e ao contrário de certas leituras com vieses “democratistas” em excesso, as questões econômico-materiais — os fatos objetivos da existência das classes trabalhadoras — são, em determinadas contingências históricas, elementos precípuos na reconstrução cultural, intelectual e moral do campo de esquerda. Particularmente, da esquerda radical, revolucionária — socialista. Entendido dessa maneira, o encadeamento dialético-dinâmico da intervenção contra-hegemônica (antissistêmica, se preferirem) tem de, nesse ponto específico dos Cadernos do cárcere, apresentar um programa econômico que se transfigure em disseminação de ideias subversivas (“reforma intelectual e moral”), de modo que interações entre grupos opressores e subalternos se transformem em ciência político-militar, arte da guerra; se convertam através do Príncipe Moderno — “o moderno príncipe […] subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais” — em modalidades democrático-revolucionárias de conquista do poder (afinal, a “relação militar”, sustentou Gramsci, é a “decisiva”).5
De certo que a conjuntura nos lança na busca por “reconfigurar” as categorias, teorizações e estratégias a nós pertencentes, de maneira a melhor enfrentar os desafios do conflito de classes que compõe a sociedade brasileira (e quiçá mundial…) contemporânea. Trata-se, vale dizer, de reconstruir a esquerda radical, revolucionária; reorganizar os trabalhadores/as; e instaurar, novamente, a força e o arrebatamento de nossa subjetividade — em um momento de incerteza histórica e de novas situações e enfrentamentos políticos. Aqui estamos, circunstancialmente, no nosso instante gramsciano: desse modo, a luta pelo fim da escala 6×1 pode ser o momento mesmo da configuração de um programa econômico (“reforma econômica”). Bem entendidas as coisas; de um programa econômico de ação prática em termos metafóricos, pois ela, a luta pelo fim da escala 6×1, envolve outras solicitações fundantes da existência humana, como saúde mental, qualidade de vida, lazer, entretenimento de qualidade, estudo, gozo presencial entre os seus e cuidado com os filhos.
(Lembremos Marx, que em Salário, preço e lucro afirmava ser impreterível “refrear as usurpações tirânicas do capital”, pois “o tempo é o campo do desenvolvimento humano. O homem [e a mulher] que não dispõem de nenhum tempo livre, cuja vida, afora as interrupções puramente físicas do sono, das refeições etc., está toda ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalista, é [tão igual à natureza abrangente]”.)6
Vale dizer: trata-se de um programa-reforma econômica, em torno do qual se articule uma variedade de sujeitos políticos trabalhadores e trabalhadoras — variedade em termos racial (a negra em especial), de gênero, LGBTQIA+, de regionalidades (não apenas sudestinas) —, com suas urgências sociais e cotidianas. Claro está que, pelas nossas circunstanciais “relações de força” (de classe e entre classes), o núcleo da disposição hegemônica é o fim da escala 6×1. Na formulação que mobilizei de Gramsci, essa é a nossa reforma econômica (metaforicamente entendida); ainda assim, existe um imperativo de lançar à disputa política uma série de outras demandas: destruir a proposta do Novo Ensino Médio; proteção intransigente do BPC (Benefício de Prestação Continuada); combate inadiável contra a violência da polícia militar racista, que se disseminou no último período. Quanto à pauta do fim da escala 6×1, pequenas ações podem ser empreendidas: formação de coletivos contingentes nos bairros periféricos para discussão e ação, quando ocorrer; jornais rápidos de distribuição em pontos de transporte nas cidades; encontros públicos com trabalhadores e trabalhadoras mobilizados; reels e stories nas redes sociais, feitos por influencers de esquerda e progressistas sobre o tema do fim da escala 6×1, debates em casas de cultura e universidades sobre o problema de saúde mental que afeta o proletariado etc.
Aqui não se trata do cálculo frio e racionalístico burguês de soma-zero. Ou se ganha tudo ou se perde tudo. Na luta de classes há algo de uma dialética desesperada, para dizer com Hegel, na qual o reconhecimento tergiversa, desaba, irrompe novamente, conquista seu desejo. Com efeito, o impulso para reconstruir a esquerda radical e revolucionária — tarefa que não será fácil nem realizável do dia-para-a-noite — passa pela reforma cultural, intelectual e moral, hegemonizada pela metáfora da reforma econômica. A saber, de maneira a forjarmos na dinâmica do conflito de classes uma ciência militar — ascendermos para a “relação militar decisiva” —, com vistas ao instante em que irá reluzir no imediato a possibilidade de conquista do poder político pelos que nada têm, a não ser sua força de trabalho. Ora, a luta pelo fim da escala 6×1 é a hora do Gramsci (o revolucionário, o fundador do Partido Comunista Italiano, o leninista, o das alegorias militares), é a hora da hegemonia (dos/das de baixo).
Notas
- Ver Álvaro Bianchi. O Laboratório de Gramsci: filosofia, história e política, Ed. Zouk, 2018. ↩︎
- Ver Mariano Zarowsky. Gramsci y la Traducción: génesis e alcances de uma metáfora, Prismas, Revista de Historia Intelectual, nº 17, 2013. ↩︎
- Peter Thomas. A Virada de Moscou: diálogo entre Gramsci e os Bolcheviques (1922-1923), Revista Outubro, nº 30, 2018. ↩︎
- Cito a partir da edição da Civilização Brasileira, organizada por Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurelio Nogueira, 6ª edição, p. 18-19 ↩︎
- Cf. Cadernos do Cárcere, v. 3, Maquiavel: notas sobre o Estado e a Política, parágrafo 17 [Análise das Situações: relações de força], p. 45. Nesse aspecto o autor do As Antinomias de Gramsci, Perry Anderson, comente um erro imperdoável para um intelectual marxista de sua estatura e de tamanho significado histórico para a esquerda. Em nenhum momento do ensaio ele analisa de maneira assimétrica (com o peso necessário no interior da estrutura teórico-conceitual dos Cadernos) e substantiva as precípuas metáforas militares de Gramsci — o que o leva, grosso modo, a em certos pontos do seu texto sugerir uma tendência “reformista” a rondar os Cadernos do Cárcere, mesmo não sendo um reformismo ao estilo da social-democracia alemã. Seja como for, Anderson jamais poderia ter formulado tal consideração e sequestrado referências a noções militares do teórico comunista, o que significa dizer, de alguma maneira, “sequestrado” sua lealdade com a revolução socialista e a tomada do Estado burguês pelos trabalhadores (e, dentro de certas configurações políticas, com violência). ↩︎
- Note-se que aqui mudei a formulação de Salário, Preço e Lucro. A passagem contém o traço humano-realista de Marx, o que talvez para nossos dias seja exagerado e inconveniente. ↩︎






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Ronaldo Tadeu de Souza é pós-doutor pelo Departamento de Ciência Política da USP, pesquisador do Cedec, membro do Comite Editorial do Dicionário Marxista das Américas e do Conselho Editorial da Práxis Literária.
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