Deportações e cerceamento de imigrantes: as raízes coloniais das atuais estratégias da extrema direita

Leia um trecho de "Cidades sitiadas", de Stephen Graham

Foto: Wikimedia Commons.

Por Stephen Graham

O novo urbanismo militar se alimenta de experiências com estilos de objetivos e tecnologia em zonas de guerra coloniais, como Gaza ou Bagdá, ou operações de segurança em eventos esportivos ou cúpulas políticas internacionais. Essas operações funcionam como um teste para a tecnologia e as técnicas a serem vendidas pelos prósperos mercados de segurança nacional ao redor do mundo. Por processos de imitação, modelos explicitamente coloniais de pacificação, militarização e controle, aperfeiçoados nas ruas do Sul do globo, se espalham pelas cidades dos centros capitalistas do Norte. Essa sinergia, entre operações de segurança nacional e internacional, é a segunda característica fundamental no novo urbanismo militar.

O pesquisador de estudos internacionais Lorenzo Veracini diagnosticou um dramático ressurgimento contemporâneo da importação de alegorias e técnicas tipicamente coloniais para a administração e o desenvolvimento de cidades nos centros metropolitanos da Europa e da América do Norte. Ele argumenta que esse processo está servindo para desfazer, de maneira gradual, uma “distinção clássica e antiga entre a faceta exterior e a interior da situação de colônia”.1

É importante destacar, então, que o ressurgimento de estratégias e técnicas explicitamente coloniais entre Estados-nação como os Estados Unidos, o Reino Unido e Israel no período “pós-colonial” contemporâneo2 envolve não apenas o uso de técnicas do novo urbanismo militar em zonas de guerra no exterior, mas sua difusão e imitação por meio da securitização da vida urbana ocidental.

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Bastiões da política etnonacionalista, os movimentos da ascendente extrema direita em geral têm forte representação dentro da polícia e das Forças Armadas estatais. Eles tendem a ver áreas rurais ou os subúrbios abastados como espaços autênticos e puros de nacionalismo branco, associados a valores cristãos e tradicionais. Exemplos disso vão desde fundamentalistas cristãos norte-americanos e o Partido Nacional Britânico até o Partido da Liberdade austríaco, a Frente Nacional francesa e a Forza Italia. Em contrapartida, os bairros cosmopolitas que crescem e se espalham cada vez mais nas cidades ocidentais são muitas vezes colocados por esses grupos nos mesmos termos orientalistas que as megacidades do Sul do globo, como lugares radicalmente externos à vulnerável nação – territórios tão estrangeiros quanto Bagdá ou Gaza.

Paradoxalmente, no entanto, a imaginação geográfica que serve de base para o novo urbanismo militar tende a tratar fronteiras coloniais e “pátrias” ocidentais como domínios fundamentalmente separados – dois lados em um embate de civilizações, de acordo com a hipótese incendiária e muito controversa de Samuel Huntington.3 Essa separação criativa coexiste de modo desconfortável com a progressiva fusão, em um todo indistinto, das doutrinas de segurança, militares e de inteligência que lidam com ambos os lados. Tais concepções procuram negar as formas pelas quais as cidades de ambos os domínios estão cada vez mais ligadas pela imigração e pelo investimento.

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Então, como sempre, a maneira como a vida urbana nas áreas colonizadas é imaginada reverbera com força nas cidades dos colonizadores. De fato, a projeção das alegorias coloniais e dos exemplos de segurança das metrópoles pós-coloniais nos centros capitalistas é alimentada por um novo “orientalismo dos bairros pobres”.4 Seu lastro é uma representação disseminada entre formadores de opinião de direita nas áreas de segurança, militarismo e política segundo a qual os distritos de imigrantes nas cidades do Ocidente são zonas “atrasadas” que ameaçam o corpo político das cidades ou nações ocidentais. Na França, por exemplo, o planejamento estatal trabalhou para conceituar os projetos habitacionais de massa da periferia (os banlieues) como reservas “quase periféricas”, conectadas – mas distantes – aos centros metropolitanos do país.5 Lembranças amargas dos argelinos e de outras guerras anticoloniais saturam o discurso da extrema direita francesa sobre a diminuição do poder “branco” e a “insegurança” causada pelos banlieues – um processo que levou a uma dramática mobilização das forças de segurança dentro e ao redor dos principais complexos habitacionais de imigrantes depois dos tumultos nas periferias em 2005.

Discutindo a mudança de colonização externa para interna na França, Kristin Ross aponta para a maneira como o país hoje “se distancia de suas (antigas) colônias, tanto no interior quanto no exterior”. Isso funciona, ela continua, através de um “isolamento dos imigrantes, sua remoção para os subúrbios em uma grande reforma das fronteiras sociais de Paris e de outras cidades francesas”.6 Os tumultos de 2005 foram apenas os mais recentes em uma longa trajetória de reações à militarização e à securitização crescentes dessa forma de colonização interna e “periferidade” imposta no que Mustafa Dikeç chamou de “áreas ruins”, da República Francesa.7

De fato, tamanha é a fusão por parte da direita contemporânea entre terrorismo e imigração que simples atos de imigração hoje são tratados quase como atos de guerra. Essa mudança discursiva foi chamada de “armamentização” da imigração8 – mudar a ênfase, que passa das obrigações morais de oferecer hospitalidade e asilo para a criminalização ou desumanização dos imigrantes, como se estes fossem armas contra bases supostamente homogêneas e etnonacionalistas de poder nacional.

Aqui, os debates mais recentes sobre a guerra assimétrica, irregular ou de baixa intensidade – em que nada pode ser definido fora das acepções ilimitadas e intermináveis de violência política – se confundem de maneira desconfortável com o crescente clamor de demonização feito por figuras da direita e da extrema direita das cidades diaspóricas e cada vez mais cosmopolitas do Ocidente. Levando sua tese sobre o conflito de civilizações ainda mais longe, Samuel Huntington atualmente argumenta que a própria trama do poder e da identidade nacional dos Estados Unidos está sob ameaça não só por causa do terrorismo islâmico global, mas porque grupos não brancos e, em especial, latinos estão colonizando, e dominando, as regiões metropolitanas estado-unidenses.9

Adotando visões igualmente maniqueístas do mundo, o teórico militar norte-americano William Lind afirmou que atos prosaicos de imigração do hemisfério Sul global para as cidades do Norte agora devem ser considerados atos de guerra. “Na guerra de quarta geração”, escreve ele, “a invasão pela imigração pode ser, no mínimo, tão perigosa quanto a invasão por um exército nacional”. Lind argumenta que, sob o que ele chama de “ideologia venenosa do multiculturalismo”, imigrantes nas nações ocidentais hoje podem criar “uma variedade doméstica da guerra de quarta geração, que é de longe o tipo mais perigoso”.10

Considerando o trânsito de mão dupla dos modelos do novo urbanismo militar entre as cidades ocidentais e aquelas nas fronteiras coloniais, alimentado pelo antiurbanismo instintivo dos Estados de segurança nacional, não surpreende que cidades em ambos os domínios comecem a demonstrar similaridades impressionantes. Nos dois âmbitos, proliferam fronteiras rigorosas em estilo militar, cercas e postos de controle ao redor de enclaves protegidos e “zonas de segurança”, sobrepostos à cidade ampla e aberta. Barreiras feitas de módulos de concreto, postos de controle de identidade, circuito interno de TV, fiscalização biométrica e formas militares de controle de acesso protegem arquipélagos de centros sociais, econômicos, políticos ou militares fortificados de um exterior considerado indomável, empobrecido ou perigoso. Nos exemplos mais extremos, isso inclui zonas internacionais, prisões militares, bairros étnicos sectários e bases militares; eles estão crescendo ao redor de distritos financeiros estratégicos, embaixadas, espaços de consumo e de turismo, complexos portuários e aeroportuários, arenas esportivas, comunidades muradas e zonas francas.

Nas duas esferas, esforços para identificar as populações urbanas estão ligados a sistemas similares que observam, rastreiam e têm como alvo indivíduos perigosos em meio à massa da vida urbana. Assim, enxergamos um paralelismo no uso de satélites de alta tecnologia, drones, circuitos internos “inteligentes” de TV, armas “não letais”, mineração de dados e fiscalização biométrica nos contextos muito diferentes de cidades nacionais e estrangeiras. E, finalmente, nos dois casos, existe uma percepção semelhante de que novas doutrinas de guerra perpétua estão sendo usadas para tratar todos os moradores urbanos como alvos constantes, cuja natureza benigna, em vez de ser presumida, agora precisa ser constantemente demonstrada para complexas arquiteturas de vigilância ou tecnologias de mineração de dados conforme o indivíduo se desloca pela cidade. Tais fatos são amparados por suspensões legais paralelas que têm como alvo grupos considerados ameaçadores, com restrições especiais, prisões preventivas ou encarceramento a priori em campos de tortura e gulags ilegais mundo afora. Apesar de funcionar de diversas maneiras, todos esses diversos arquipélagos se sobrepõem a tradições urbanas de sistemas de segurança de livre acesso que forçam as pessoas a provar sua legitimidade se quiserem se mover com liberdade. Urbanistas e filósofos hoje em dia se perguntam  se a cidade como espaço-chave para protestos e mobilização coletiva dentro da sociedade civil está sendo substituída por geografias complexas criadas por vários sistemas de enclaves e campos conectados entre si e afastados do exterior urbano que existe para além dos muros ou sistemas de controle de acesso.11 Nesse contexto, pode-se perguntar se a securitização urbana chegará, no futuro, a um nível que efetivamente desconecte o papel econômico estratégico das cidades como condutoras-chave da acumulação capitalista do papel histórico delas como centros para a mobilização de dissenso democrático.

Notas

  1. Lorenzo Veracini, “Colonialism Brought Home: On the Colonization of the Metropolitan Space”, Borderlands, v. 4, n. 1, 2005. ↩︎
  2. Ver Derek Gregory, The Colonial Present (Oxford, Blackwell, 2004); David Harvey, The New Imperialism (Oxford, Oxford University Press, 2005) [ed. bras.: O novo imperialismo, trad. Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves, São Paulo, Loyola, 2005]. ↩︎
  3. Ver Samuel Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order (Nova York, Simon and Schuster, 1996) [ed. bras.: O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial, trad. M. H. C. Côrtes, Rio de Janeiro, Objetiva, 1997]. ↩︎
  4. Ver Sally Howell e Andrew Shryock, “Cracking Down on Diaspora: Arab Detroit and America’s ‘War on Terror’”, Anthropological Quarterly, n. 76, p. 443-62 ↩︎
  5. Stefan Kipfer e Kanishka Goonewardena, “Colonization and the New Imperialism: On the Meaning of Urbicide Today”, Theory and Event, v. 10, n. 2, 2007, p. 1-39. ↩︎
  6. Kristin Ross, Fast Cars, Clean Bodies: Decolonization and the Reordering of French Culture (Cambridge, MIT Press, 1996), p. 12. ↩︎
  7. Mustafa Dikeç, Badlands of the Republic: Space, Politics and Urban Policy (Oxford, Blackwell, 2007). Ver também Kristin Ross, Fast Cars, Clean Bodies, cit. ↩︎
  8. Ver Cato, “The Weaponization of Immigration”, Center for Immigration Studies, fev. 2008. ↩︎
  9. Ver Samuel Huntington, Who Are We: The Challenges to America’s National Identity (Nova York, Simon & Schuster, 2005); e, do mesmo autor, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, cit. ↩︎
  10. William Lind, “Understanding Fourth Generation War”, Military Review, set.-out. 2004, p. 16. ↩︎
  11. Ver Bülent Diken e Carsten Bagge Laustsen, The Culture of Exception: Sociology Facing the Camp (Londres, Routledge, 2005), p. 64; Stephen Graham e Simon Marvin, Splintering Urbanism (Londres, Routledge, 2001). ↩︎

Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar, de Stephen Graham
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Stephen Graham é professor da disciplina Cidades e Sociedade na School of Architecture, Planning and Landscape da Universidade de Newcastle, e autor de Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar.

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