A China não é uma “ditadura socialista”: é só uma ditadura

Luis Felipe Miguel responde a texto de Elias Jabbour em debate sobre a significação política da China pelas esquerdas

Luis Felipe Miguel responde a texto de Elias Jabbour em debate sobre a significação política da China pelas esquerdas

A Guarda de Honra da China, composta conjuntamente pelo Exército, Marinha e Força Aérea chinesas em frente ao Grande Salão do Povo, no centro de Pequim. (Imagem: Cheong Wa Dae/Wikimedia Commons, 2013.)

Por Luis Felipe Miguel

Para rebater uma breve e despretensiosa postagem de rede social, que publiquei há mais de um mês, Elias Jabbour escreveu um longuíssimo texto em defesa do modelo chinês – aquele que, há tempos, ele alardeia como sendo “o socialismo do século XXI”.

Minha questão é se o regime chinês pode ser classificado como “socialismo”, em qualquer sentido apropriado da palavra.

Não vou me alongar, uma vez que boa parte do texto se dedica a exaltar o acelerado crescimento econômico da China, o que pouco tem a ver com o assunto. Em outros momentos, meu interlocutor apenas sai pela tangente. Por exemplo, reconhece que é “péssimo” que não exista nenhuma mulher entre os dirigentes chineses, mas não há “país do mundo onde os direitos das mulheres avançaram mais do que na China nos últimos 75 anos”, já que antes da revolução elas tinham que mutilar seus pés. São 75 anos, não 75 dias. A incorporação das mulheres à força de trabalho e às cadeias de consumo na China é a reprodução tardia e apenas parcial do que aconteceu em outros países capitalistas. Não há nada a exaltar aqui.

Mas vamos ao que interessa. O que há de socialismo no “socialismo” chinês? Essa é a questão que Jabbour não responde, a não ser com sofismas.

Começando com o caso concreto, que motivou minha postagem: os trabalhadores escravizados na fábrica da BYD na Bahia. O que levaria à importação de centenas de operários, sob pretextos falsos, ao arrepio da legislação brasileira, se não a possibilidade de impor uma taxa de exploração ainda mais brutal do que aquela que vigora aqui?

Jabbour admite “repulsa” pelas práticas da empreiteira chinesa, mas emenda com a afirmação de que as condições de trabalho e os salários avançam na China (é fácil prever a continuidade da frase: mais rápido do que em qualquer outro país do mundo).

Nenhuma palavra sobre a alta taxa de informalidade do mercado de trabalho chinês. E cabe explicar por que as grandes corporações ocidentais mantêm suas plantas industriais em território chinês, se não para economizar nos custos de mão de obra.

Enquanto isso, a BYD forçou os trabalhadores a gravarem uma mensagem repudiando as denúncias de trabalho análogo à escravidão, explicadas como “diferença cultural”. E instalou câmeras de vigilância nos canteiros de obra.

É isso o “socialismo do século XXI”?

Ou o Estado chinês é cúmplice ou permite que as grandes empresas ajam da forma como bem entendam. Em um caso como no outro, estamos mais próximos do capitalismo selvagem do que do socialismo.

Em certo momento do texto, Jabbour diz que os revolucionários do Terceiro Mundo sabiam que a edificação de um “poderoso Estado industrial” seria condição necessária para a transição socialista – uma etapa prévia, diríamos, se a palavra não estivesse vetada. Mesmo sem discutir a premissa, que é questionável, isso não permite dizer que a China é “o socialismo do século XXI”. É um país que vivencia um processo de acelerada acumulação de capital. Podemos acreditar que os chefes do Partido Comunista Chinês, bem como os multibilionários associados a eles, um dia guiarão esse “poderoso Estado industrial” na direção do socialismo? Podemos. Mas é difícil encontrar qualquer evidência para sustentar tal crença.

Em nome do “pragmatismo”, por simples campismo (se a China se opõe aos Estados Unidos, deve ser um bom país) ou por motivos menos ingênuos, aceita-se um “socialismo” com propriedade privada dos meios de produção, exploração gigantesca da mão de obra, enorme desigualdade material, repressão sobre a classe trabalhadora, alienação, consumismo, conformismo, ditadura, devastação ambiental…

Vou me deter rapidamente sobre os dois últimos pontos.

Jabbour descreve a China como uma grande democracia, o que seria cômico, se não fosse trágico. Quem não vê isso, é claro, estaria teleguiado pela imprensa burguesa. Mas a “democracia chinesa” é feita de silenciamento da crítica, repressão contra os divergentes, brutalidade estatal, poder discricionário da camarilha dirigente e controle social distópico (o sistema de “crédito social”). Ou os estudantes na Praça da Paz Celestial eram todos agentes da CIA? Ou as imagens e os testemunhos dos massacres foram forjados?

E não adianta dizer que a China está instalando “energia verde”, quanto continua sendo o motor global do consumo predatório. Falar de “energia verde” sem discutir a mudança no modelo de produção e consumo, sem apontar que a dinâmica da acumulação capitalista é a responsável pelo colapso planetário, é embarcar na conversa mole do “desenvolvimento (capitalista) sustentável”.

O que há é a utilização permanente de dois pesos e duas medidas. O que criticamos no capitalismo, absolvemos na China em nome de um “processo contraditório”. Mas esse processo nos leva para bem longe do socialismo, que é, convém não esquecer, a promessa de uma sociedade definida pela igualdade, pela solidariedade e pela liberdade individual e coletiva.

Nem me espanto com o estratagema. Numa entrevista famosa, Jabbour defendeu que a pena de morte deve ser abolida no Ocidente, mas aplicada na China. A direita não se cansa de reproduzir a entrevista, apresentando-a como prova da má fé da esquerda.

A única maneira de responder a isso é lembrando que, felizmente, nem toda a esquerda é assim.

Ao longo do texto, Jabbour me designa, muitas vezes, como “acadêmico”. Parece um recurso ao anti-intelectualismo, que é tão comum nos neostalinistas. Mas não tenho problema com o rótulo. Prefiro, mil vezes, ser um acadêmico a ser o servil propagandista de uma ditadura.


Quais e quantas combinações são possíveis entre o marxismo e a ciência política? Em Marxismo e política: modos de usar, o cientista político Luis Felipe Miguel debate a relevância do marxismo para a análise da política. A obra busca introduzir e enfatizar a utilidade desse marco teórico para a produção de uma ciência política capaz de entender o mundo social e orientar a ação nele.

Ao longo dos nove capítulos, o autor cruza diferentes temas da tradição marxista com o campo da ciência política, como as classes sociais, o Estado, o gênero, alienação e fetichismo e muitos outros. Em contrapartida, demonstra a importância de uma abertura do próprio marxismo ao diálogo com a produção contemporânea da ciência política. Com isso, ao mesmo tempo evita o dogmatismo e abre caminhos para a pesquisa em ambos os territórios dos quais se propõe a tratar.

Marxismo e política: modos de usar, de Luis Felipe Miguel, tem apresentação de Andréia Galvão, orelha de Leda Paulani e capa de Daniel Justi.

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Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Autor, entre outros livros, de Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018), O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular, 2019) e Marxismo e política: modos de usar (Boitempo, 2024). Também é coautor, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Colaborou com o livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018).

4 comentários em A China não é uma “ditadura socialista”: é só uma ditadura

  1. Iuri Faria Codas // 06/02/2025 às 12:38 pm // Responder

    O texto deixa claro que o Luis Felipe Miguel nunca estudou diretamente nada sobre a China e opina só com base em notícias esparsas que ele leu no dia a dia. Até a fake news de “sistema de crédito social” ele usou como argumento.

    Falta o mínimo de seriedade por parte do professor para debater esse tema.

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  2. Sinceramente, professor, sua visão me parece idealizada e ingênua. Você parece esquecer que todos os projetos que minimamente tenderam ao socialismo na história humana foram ou violentamente esmagados ou asfixiados pelas forças do imperialismo capitalista. Se a China não tivesse se tornado o que é, já teria sido violentamente coagida a aceitar um lugar de subserviência explorada na ordem capitalista global. Não existe caminho florido ao socialismo. O que existe é a hostil selva desértica da ordem capitalista. Qualquer caminho que queira efetivamente negá-la deve antes de tudo aceitar que precisa encontrar uma forma de relacionar-se com essa realidade sombria, ou será impiedosamente devorado por ela.

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  3. Laurenio Leite Sombra // 08/02/2025 às 3:06 pm // Responder

    Fiquei com a sensação de um vácuo enorme na discussão. Jabbour apresentou uma série de categorias e pressupostos, e todos ignorados nessa resposta. A China é um caso cheio de contradições no que avançou social e ambientalmente, e no que permanece enrascado no modelo capitalista (inclusive em relação ao desastre ambiental que esse modo de produção suscita), mas é um fato que foi o único modelo até agora que sinalizou uma porta de saída, gostemos dele ou não. Tudo se resumiu no relato de alguns fatos, uma definição meio simplista de socialismo e, claro, o recurso inevitável ao adjetivo “neostalinsta”, que suspende qualquer debate possível. Desconfio que não Elias Jabbour não vi se animar sequer para uma réplica.

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  4. Eu gosto bastante de um excerto de Gramsci acerca da relação entre os trabalhadores e o Estado:

    “As leis do Estado operário devem ser postas em execução pelos próprios operários: somente assim o Estado operário não corre o risco de cair em mãos de aventureiros e politiqueiros, não corre o risco de tornar-se uma imitação do Estado burguês. Por isso, a classe operária deve adestrar-se, deve educar-se para a gestão social, deve adquirir a cultura e a psicologia de uma classe dominante, deve adquiri-la com seus meios e seus sistemas, com comícios, com congressos, com discussões, com educação recíproca.” (GRAMSCI, A. Homens ou máquinas?. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 158)

    Será que houve na China algum avanço na passagem do trabalhador de classe dirigida para dirigente? Em que medida o trabalhador determina os rumos da sociedade? Qual é a relação entre o Partido Comunista e o trabalhador chinês?

    Apesar de Jabbour apresentar vários dados da China, não diz muito sobre as questões acima. O aumento dos salários, a criação de leis trabalhistas, o crescimento do PIB e a diminuição das desigualdades de gênero são fenômenos que também podem ocorrer em determinados períodos na história dos países capitalistas. Portanto, não são necessariamente o indício de que a China caminha em direção ao socialismo.

    Na verdade, a situação de exploração dos trabalhadores na construção da fábrica da BYD no Brasil é a demonstração de uma lei do mercado muito conhecida, que é a extração voraz do máximo de mais-valor possível, e não de um pretenso “socialismo de mercado”.

    Aliás, Jabbour emprega muitas expressões e termos curiosos. Além do “socialismo de mercado”, temos as “entidades não pública” (não seriam privadas). Para ele, a China está superando as dicotomias “planejamento x mercado” e “pública x privada”, de modo que é possível haver, ao mesmo tempo, planejamento e economia de mercado e um tipo de propriedade privada que se presta à finalidade pública. É como se a China domasse o capitalismo e o usasse a favor dos trabalhadores. Fica um mistério: como isso é possível em um país com tantos bilionários e com um nível de exploração do trabalho tão grande?

    Assim, os questionamentos do professor Luis Felipe Miguel são muito pertinentes.

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