Três artigos e três cartas de Marx: dez lições para reconstruir a esquerda

"Abordar a política e as disputas que a configuram a partir da estrutura que conforma a história mundial significa que a luta social dos de baixo é travada em condições nem sempre favoráveis. A ação prática, no âmbito das constelações históricas que se formam sobre as costas dos indivíduos, tem de enfrentar com ousadia as determinações — mesmo as mais indesejáveis — que se erguem como muros."

Retrato de David Riazanov por Isaak Brodsky (1920), via Wikimedia Commons

Por Ronaldo Tadeu de Souza

“[é também o momento] da luta conceitual”
Tommie Shelby no prólogo a O Contrato Racial, de Charles W. Mills

O próprio Marx afirmava na introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel que as armas da crítica não devem substituir a crítica das armas, e que o poder material deve ser derrubado pelo poder material. Trata-se, em termos interpretativos, de que na luta de classes o momento da prática, o instante verdadeiro da ação, supera a reflexão teórica em qualquer sentido. No posfácio à primeira edição de O Estado e a revolução, Lênin pode dizer, “é mais [interessante] e mais agradável fazer [e viver] a experiência de uma revolução do que escrever sobre ela”. Entretanto, nem o autor de O capital (estudado, pesquisado e escrito por um período de mais de 15 anos), nem o líder da maior revolução de massas do século XX (e que meditou, sistematicamente, sobre ela) negaram a capacidade das ideias e do pensamento de impulsionarem movimentos políticos com vistas à transformação e emancipação da ordem social burguesa. Ideias podem ser, no interior de certas circunstâncias, mobilizadoras, e a esquerda, aqui e alhures, não irá se reconstruir — obviamente, estou a falar da reconstrução da esquerda radical e revolucionária — se a circulação daquelas estiver ausente.

Com efeito, é preciso cumprirmos a exigência de estabelecer a mais ampla disseminação dos princípios, valores, filosofias e convicções que compõem o pensamento crítico radical (por que não, comunista?), no trabalho atual de dar existência novamente a uma esquerda digna deste nome. Nesse aspecto, as intervenções pontuais de Karl Marx são expedientes sugestivos; proporcionam ao leitor e leitora não só o estudo das intuições argutas do pensador e revolucionário alemão acerca de questões imediatas do conflito de classes, mas permitem, também, elaborar lições de modo a instituir a tão necessária cultura socialista. Essa é mais do que imprescindível em si e nos combates de classes que estão por vir.

Marx não foi só o filósofo moderno inscrito no contexto alemão (europeu) do século XIX, que produziu obras com arranjos conceituais quase que “incompreensíveis”, “impenetráveis”, como a já mencionada Crítica da filosofia do direito de Hegel, os Grundrisse e O capital, além de textos que se tornaram clássicos da teoria política como O 18 de brumário de Luís Bonaparte e As lutas de classes na França. Seus escritos efêmeros, de atividade cotidiana — fugazes — e as cartas trocadas com amigos e colaboradores constituem um dos mais importantes elementos do percurso do fundador do socialismo científico. Dessa forma, diante do quadro político dos últimos meses com os anúncios pelo governo do PT e do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de pacotes econômicos atendendo aos anseios de lucro de setores consideráveis da burguesia nacional (branca) em consonância com a elite dominante mundial, e dos impactos imediatos e de médio prazo na sociedade brasileira, particularmente, na classe trabalhadora negra (mas não só…) convém extrairmos considerações, raciocínios e teorizações de três artigos jornalísticos e três cartas de Marx tendo no horizonte a urgência de reerguer a esquerda brasileira. Os textos aqui abordados são: “A crise econômica na França”, “O novo decreto do Banco Francês” e “A situação da Europa e o estado financeiro da França”1 (escritos, respectivamente, em 03 de junho de 1857, 10 de julho de 1857 e 12 de fevereiro de 1858); duas cartas a Kugelmann, a Carta de 9 de outubro de 1866 e a Carta de 17 de abril de 1871; e uma carta a Weydemeyer, Carta de 05 de março de 18522.

Uma advertência. Como assevera Perry Anderson, todas as escolhas na história das ideias (aquelas que não se restringem às técnicas burocrático-justificatórias impostas pelas instituições acadêmicas e de concessão de recursos parcos para pesquisa) são em alguma medida, arbitrárias. No que segue não será diferente, pois o que se depreende desses textos? Proponho Dez Lições a partir desse conjunto singelo de escritos de Karl Marx.

Primeira Lição: análise da totalidade social (dialética)

Em meio as especificidades redutoras que impactam negativamente as ciências humanas, e têm consequências para algumas posturas da esquerda, que é hoje (e por certo tempo ainda deverá ser) influenciada sobremaneira pelo habitus universitário, esses textos de Marx demonstram que mesmo em análises de ocasião é possível — e mesmo recomendável — almejar compreensões da luta de classes mais totalizantes porque intrincadas. Bem entendidas as coisas, é evidente que o pensador alemão não se propôs deliberadamente a desafiar a especialização e tecnicização do conhecimento, em sua época, não havia nem sequer vestígios disso.

Ao abordar a conjuntura financeira da Europa e da França, Marx não expõe apenas as condições econômicas imediatas. Em um dos parágrafos do artigo de julho de 1857, ele comenta o jogo dos partidos das classes dominantes; a estrutura social dos países do continente; a cultura política da Inglaterra (sempre tediosa…); as subjetividades incandescentes impulsionadas pelos distúrbios monetários; e a historicidade (política) por-vir, eventualmente, resultado do momento tenso das finanças. Com efeito, uma esquerda que só se atenta aos aspectos econômicos e financeiros de suas sociedades (e o efeito, vulgarmente, objetivo de planos, medidas e anúncios econômicos), a nossa em particular, não terá nem mesmo condições intelectuais de entender a própria economia e as finanças. Estará fadada à derrota e à vergonha. O que se exige é o entendimento crítico da totalidade social autêntica, não-idêntica e radical.

Segunda Lição: internacionalismo e espírito anticolonial

Vezes sem fim, atribui-se a Marx, aos marxistas e ao marxismo a alcunha de “eurocêntricos”. Acusam-nos de escrever tendo na classe trabalhadora branca inglesa, francesa, alemã, belga e irlandesa o eixo de análise. É certo que o socialismo revolucionário, as ideias do comunismo moderno enquanto tal, originou-se, grosso modo, no continente europeu ocidental. Contudo, mesmo não dispondo de espaço nesta breve intervenção teórica, é imprescindível observar o que vários marxistas compreenderam o desenvolvimento histórico desigual e combinado do capitalismo, e que o surgimento do capital — o outro que tem de ser destituído pela negatividade do comunismo — na Europa era seguido, simultaneamente, pela evolução contraditória, particular, em outros continentes e sociedades (e Marx foi um dos responsáveis, não o único, pelo feito).

Seja como for, o horizonte internacionalista incansável e o temperamento anticolonial insubmisso compunham o pensamento e a prática do autor de O capital. Assim, no artigo A situação da Europa e o estado financeiro da França”, de 10 de julho de 1857, ele expressa sua preocupação com as condições políticas e econômicas da Índia e da China, uma vez que a Inglaterra e sua burguesia branca possuíam negócios nos dois países. O anseio de Marx em organizar política e estrategicamente o conjunto do movimento operário no âmbito internacional o conduziu ao estudo da luta de classes em outras sociedades — tanto as não-europeias quanto as não-centrais da Europa.

Com o genocídio do povo trabalhador palestino pelo Estado assassino de Israel, apoiado desde sempre pelo imperialismo estadunidense — tendo inclusive o Partido Democrata, Joe Biden e Kamala Harris à frente, para não comentar as declarações de Trump, anunciando ao mundo que os Estados Unidos irão ocupar Gaza, falas ultrajantes e terríveis para aquele povo e humanidade verdadeira… —, o internacionalismo de Marx é incontornável enquanto lição na reconstrução da esquerda radical-revolucionária.

Terceira Lição: delineamento e/ou posicionamento das figuras de um governo (burguês)

Se pudéssemos escolher ou apontar um dos principais legados da obra de Marx, precisamente, no que concerne à luta política dos trabalhadores e trabalhadoras, não teríamos dificuldade em afirmar que um deles foi sua teoria do Estado, dos regimes e do governo. No Manifesto comunista, argumenta-se, por um lado, que os “objetivos [dos comunistas e dos trabalhadores e trabalhadoras] só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social [e político-estatal] existente”; e, por outro, que “o executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”. Ainda que estabelecendo a importância incontornável do entendimento histórico-estrutural acerca da política e do Estado (há uma macroteoria política marxista), o revolucionário alemão não era todavia alheio a quem eram as figuras precípuas no interior dos Estados, regimes e governos burgueses, e que seriam as responsáveis por dar andamento aos interesses das classes dominantes, a proceder com os arranjos econômicos capitalistas, a liderar as concórdias na alcova e a assumir a voz pública de todo esses enredos. Qualquer análise materialista e baseada na luta de classes, no vislumbre da transformação efetiva da ordem social vigente, tem de, fundamentalmente, considerar com atenção presciente quais são e/ou quem são as figuras eminentes de dado governo (“burguês”). Marx, ao analisar as medidas hodiernas do Banco da França em meados do século XIX, acompanha a trajetória de seu presidente, na ocasião colocado no cargo por Luís Felipe. Conhecido como Conde d’Argout, ele soube bem quais eram os artifícios, embustes mesmo, necessários para permanecer à chefia da “Bancocracia Francesa” por 23 anos. Dentre as medidas de D’Argout, que sempre “mostrou [mais] fidelidade […] ao emprego e [ao] salário que a outra coisa”, estavam: o corte de crédito para o comércio de Paris (crédito esse que os comerciários costumavam dar por certo para organizar, supostamente, seus pequenos e médios negócios); a ampliação do monopólio do Banco da França por meio da permissão para emitir notas também nas províncias — o aumento do “lucro do Banco [foi obtido com o] privilégio de emitir notas de denominação mais baixas e estendendo seu monopólio através do esmagamento dos bancos de emissão da província” —; e disponibilização de ações que eram vendidas na Bolsa ao preço de 4.500 francos e entregues aos “velhos acionistas ao preço de 1.100 francos”, favorecendo, grandemente, a Bancocracia, seus lucros, em detrimento do Estado. Argout, astucioso e prestativo com a classe dominante francesa, não teve dúvidas no golpe de Estado de Bonaparte: “o dócil presidente não apenas fechou os olhos ao assalto [do sobrinho do tio]”, ele foi a voz que convenceu o “mundo comercial” e financeiro de que nada mudaria com o bonapartismo. Argout, se constituiu no período em figura decisiva e imprescindível no governo da França em meio à crise econômica e política dos anos 1850. Assim, é primordial para qualquer análise materialista e dialética da luta social a observância acerca de quem são as personalidades políticas nas estruturas governamentais, figuras proeminentes em cargos estratégicos na hierarquia institucional do Estado burguês e que, portanto, têm posicionamento decisivo no jogo do poder de classe. No mundo e no Brasil há diversas dessas figuras…

Quarta Lição: capacidade tática em identificar os aliados

A ação autônoma e independente das forças de esquerda e dos trabalhadores é condição incontornável nos conflitos de classe em sentido abrangente. Um dos pontos de discordância política entre Marx e Lassalle estava na busca do último pela conformação de alianças com o Estado (e o governo) de Bismark; no marxismo clássico, a compreensão de que a libertação da classe operária será realizada pela própria classe operária é um princípio indiscutível. Ainda assim, nas disputas sociais diárias exige-se que a esquerda (radical, revolucionária) tenha a capacidade tática de identificar quem são seus aliados de ocasião — na imediatidade da ação prática disruptiva. Com efeito, nas crises econômicas, nos momentos de indecisão política, há grupos que serão mais afligidos que outros; esses, invariavelmente, são aqueles constituídos pelo povo miserável no geral e pelos setores médios baixos. No artigo “A crise econômica na França”, Marx comenta que não só os “trabalhadores [já] desempregados” serão os mais prejudicados, como haveria um “agravamento da pobreza da parte [média] dos consumidores” com a redução drástica da renda e a “não diminuição dos preços, bem como perdas para a “população agrícola da França”, uma vez que o comércio de grãos seria profundamente afetado. A questão tática, as articulações para as querelas contingentes de interesse da maioria dos de baixo (seus grupos, setores, “representantes”, conjunto de bairros, trabalhadores e trabalhadoras de áreas específicas), em certos quadros conjunturais de curta e média duração, apresenta à esquerda uma tarefa de relevância considerável.

Quinta Lição:  instituições políticas e conjuntura

Na terceira lição, o eixo da proposição eram as personalidades de destaque no âmbito da concertação político-institucional dos governos burgueses. Isso, entretanto, não implica deixar em segundo plano as instituições políticas enquanto tais. Sinteticamente: nos três artigos em que trata da situação econômica, financeira e comercial da Europa e da França, Karl Marx examina — com disposição teórica materialista e de classe — o posicionamento, localização e função fundamental do Banco da França. No artigo de 3 de junho de 1857, ele afirma que o Banco da França interviu de variadas maneiras no período da crise. Em 10 de julho de 1857, conquanto estivesse havendo eleições, detenções e processos judiciais (penais) contra os oponentes da situação na Paris convulsionada, o Banco da França agia para conter a queda das suas ações, forjar novos monopólios e adquirir privilégios governamentais — e mesmo assim o banco viu suas ações caírem de “4000 francos no início de junho” para “2890 francos no dia 3 de julho”. Em 12 de fevereiro de 1858, no artigo “A crise econômica na França”, Marx faz uma análise mais detalhada da localização institucional, política, do Banco da França. Se Luís Bonaparte era o homem que conduzia o Império da França — ele “se intitula[va] Imperador da França” —, o Banco da França poderia ser considerado o general-em-chefe da nação. Desse modo, a dinâmica financeira diária do banco impactava, diretamente, o cotidiano da sociedade francesa: os “mercados agrícolas”; o “mundo comercial”; a “vida industrial”; as “reservas de metal” (prata e ouro)”; as “ferrovias e companhias ferroviárias”; os “consumidores”; e o próprio “governo” e, sobretudo, o povo (que viu os preços aumentarem com determinadas atitudes do banco) sentiram as consequências do importante papel que o Banco da França cumpria nos arranjos político-econômicos do país, e que nas circunstâncias  da crise afetou ainda mais o conjunto da sociedade francesa.

Sexta Lição: intrínseca relação entre finanças e política

Alguns historiadores costumam dizer que Lênin, nos dias anteriores à conquista do poder pelos sovietes (de operários, camponeses e soldados) e pelos bolcheviques, conclamava para os duvidosos e contrários à ação revolucionária naquele momento imediato de 1917: “é agora ou daqui a 200 anos”. As avaliações (dialéticas) do teórico e dirigente comunista russo são o que lhe permitiu apreender qual era o espírito do tempo que envolvia a ele e ao partido. Dito por outras palavras, Lênin, após anos de estudo, investigação e prática, entendeu o sentido da subjetividade dos trabalhadores na Rússia naquele momento de ruptura do equilíbrio político. Ora, desde 2008, quando estourou a segunda maior crise econômica da história do capitalismo desde sua emergência na modernidade, a esquerda brasileira (e quiçá mundial…), angustiante e infelizmente, ainda não produziu juízos a contento de modo a propor — teorizar e agir com radicalidade — políticas que respondam aos desejos dos mais afetados (desvalidos e subalternos) pelas contradições do capital. Uma das lições decisivas que os textos jornalísticos e as cartas de Marx nos oferecem é que situações de crise financeira — por vezes, mas não sempre — têm repercussão sócio-política. Com efeito, há em determinadas contingências da história de homens e mulheres, da luta de classes, uma dialética explosiva, incandescente, entre crise das finanças e política. No artigo “A situação da Europa e o estado financeiro da França”, de 10 de julho de 1857, encontramos Emile Pereire, “o grande charlatão financeiro do Segundo Império”, dizendo que se a França tinha que pagar 200 milhões “para manter [a economia do] império”, ela tinha também que pagar muito mais para que não o perdesse; pois, os “distúrbios financeiros do império têm [ocasionado] dificuldades políticas não só para ele próprio, mas para todo o continente” — diz Marx. E “é deste estado de coisas do império francês [e de suas finanças e crise] que as recentes insurreições na Espanha e Itália, bem como as […] complicações escandinavas, recebem […] [o] verdadeiro [impulso e] importância”.

Sétima Lição: uma definição política de luta de classes

Debatida ao longo do século XX — é bem verdade que após a contrarrevolução neoliberal, a Queda do Muro de Berlim seguida pela dissolução da União Soviética, ela tenha deixado de ser objeto de cogitação —, a noção de luta de classes está entre os maiores legados de Marx. É preciso afirmar não se tratar de consideração normativa, moralismo frágil; tem-se que o conflito entre classes decorre, sobretudo na era moderna, do próprio arranjo (imanente) entre elas. Dessa maneira, “é a ação comum dos operários […] que [forja] a luta de classes dos [trabalhadores/ras]”; vale dizer, na dialética entre os embates imediatos e a autoincitação por horizontes de vida emancipados é que emerge, expressa-se a luta de classes. Daí que, para Marx, toda a constelação social quando está, potencialmente, concentrada pode “ser realizada por meios políticos”: a ação política radical, insubmissa contra a ordem do capital e as opressões, é sempre suscetível de se empreendida pelos de baixo e pela esquerda, uma vez que os primeiros têm sua existência lançada nessa dinâmica social e os segundos tenham a percepção (elaborada) da estrutura de sentimentos coletivos em torno da luta de classes. Na conjuntura do conflito pelo fim da escala 6×1; de retirada de direitos e conquistas dos que trabalham; de aumento vertiginoso do preço dos alimentos; de sistemática violência política contra negros e pobres, é urgente insistir neste ponto: “a ação revolucionaria, isto é, a ação que decorre da própria luta de classes, [de] todo o movimento social concentrado [e] […] portanto factível de ser realizado por meios políticos (por exemplo, a redução legislativa da jornada de trabalho)”. Essas palavras foram ditas por Marx em 9 de outubro de 1866, em carta a Kugelmann.

Oitava Lição: história mundial e contingência  

Na carta a Kugelmann de 17 de abril de 1871, Marx discute a relação entre a história universal e a contingência — os acidentes da vivência humana. Trata-se de uma importante lição para a esquerda que quer se repensar e se reconstruir. Se quisermos caracterizar em termos simples o pós-modernismo, poderíamos dizer que ele se volta contra as narrativas — as marxistas sendo uma delas — que se fundam na totalidade racional da história universal. Seria equivocado asseverar a recusa de Marx aos aspectos constitutivos da história universal, e mesmo dela enquanto tal. Maior erro, contudo, esse imperdoável e inaceitável, é confundir história universal com filosofia da história [Philosophie von Geschichte], e desdobrar que o autor de O capital seria um adepto da razão lógico-abstrata na história (e inferir com isso que recusasse as contingências na ação de homens e mulheres). Abordar a política e as disputas que a configuram a partir da estrutura que conforma a história mundial significa que a luta social dos de baixo é travada em condições nem sempre favoráveis. A ação prática, no âmbito das constelações históricas que se formam sobre as costas dos indivíduos, tem de enfrentar com ousadia as determinações — mesmo as mais indesejáveis — que se erguem como muros. Não se pode escolher as circunstâncias da luta em nome e em favor dos desvalidos. Seria, de certa maneira, agradável e fácil se tal fenômeno se desse sempre em ocasiões positivas — não é o que ocorre. (Há o momento da contrarrevolução; de desorganização da classe operária; de maior capacidade de agir das forças de direita e do capital; de interstício confuso dos movimentos populares; de derrota inexorável da esquerda na batalha das ideias.) Contudo, dialético e filósofo da revolução, a contingência e os acidentes constituíam parte substantiva do pensamento de Marx; pois as lutas de classes não aconteciam apenas e exclusivamente nos quadros racionais da história universal — narrada pela ciência da história post-factum. Na carta, ele diz a Kugelmann: “seria de natureza muito mística se os ‘acidentes’ não desempenhassem papel algum. Esses mesmos acidentes caem [e ocorrem] naturalmente no curso […] do desenvolvimento [histórico] e são compensados por novos acidentes”. O que a carta quer transmitir, na verdade, são as possibilidades de ação dos homens e mulheres nas várias frestas que a temporalidade — conformada pelos próprios indivíduos, partidos e grupos — eventualmente pode ofertar: os acidentes e a contingência, ao irromperem nos arranjos lógicos da existência, devem ser enfrentados a contento pela esquerda radical e revolucionária, no horizonte de uma vida emancipada de todos os trabalhadores e trabalhadoras.

Nona Lição: ditadura ou democracia do proletariado — luta de classes

Dentre as características do pensamento de Marx, uma das mais importantes, se não a mais importante, era estabelecer no mesmo movimento de entendimento da realidade argumentos objetivos da história de homens e mulheres, reconhecimentos materiais das formas de existir, e enunciar seu negativo, a fúria da negatividade dialética (revolucionária). Na carta a Weydemeyer de 05 de março de 1852, está dito que “a existência das classes na sociedade moderna, ou sua luta” foi algo independente de suas elaborações; elas emergiram pelo desenvolvimento mesmo das relações sociais historicamente postas, assim como os primeiros intérpretes delas: “não é a mim que cabe o mérito”. No diálogo com Weydemeyer, Karl Marx conclamava: “a luta de classes conduz necessariamente à ditadura [ou democracia] do proletariado”. Por outros termos; qualquer esquerda que ainda preze por esse nome — não só o nome em si, mas enquanto eco organizativo dos subalternos — tem de agir com o intuito de potencializar o conjunto dos que trabalham em direção ao estatuto de sujeito político, de incitá-los a passar ao ato auto-organizado e racional, mas também apaixonado, pelo qual terão condições de transformar, radicalmente, a ordem social vigente.

Decima Lição: comunismo

Trata-se de imaginar (e sonhar…) a humanidade redimida, e de transfigurar o imaginado em realidade na história. Em linguagem contemporânea, da desconstrução revolucionária autêntica dos proletários, das raças, dos gêneros, das nacionalidades — das identidades impostas pela civilização do capital, pela sociedade burguesa-branca (intensificada com a contrarrevolução neoliberal) e sua classe-dominante-em-chefe, os katechons de ocasião. Quando radicalizadas, as ideias tornam-se força concreta e material no encontro com os homens e mulheres explorados e oprimidos que desejam a libertação. Na batalha das ideias, a esquerda não pode se permitir de nenhuma maneira, mesmo que como escala subjetiva de onde estamos, deixar de propor (e buscar — estratégia e tática…) a “abolição de todas as classes [e a passagem] para uma sociedade sem classes…”: o comunismo.

Notas

  1. Os textos jornalísticos e as citações ao longo do artigo podem ser encontrados e consultados na Revista Lutas Sociais (PUC-SP), nº 23, 2009. A tradução dos originais foi realizada por Paulo Barsotti. É evidente que em certas passagens estilizei as exposições de Marx, por um lado; e alguns trechos estão truncados e ambíguos dada as dificuldades do assunto (análises econômicas, com termos técnicos) tratado nos artigos escritos pelo alemão, por outro. ↩︎
  2. Sobre as cartas ver Marx-Engels – Comuna de Paris, Coleção Fundamentos, Aldeia Global, 1979. ↩︎

***
Ronaldo Tadeu de Souza é pós-doutor pelo Departamento de Ciência Política da USP, pesquisador do Cedec, membro do Comite Editorial do Dicionário Marxista das Américas e do Conselho Editorial da Práxis Literária


Empenhada há três décadas em traduzir as obras de Marx e Engels, com rigor acadêmico e editorial, e sempre a partir dos manuscritos originais, a Boitempo conta hoje com mais de trinta volumes dos dois autores publicados, além de dezenas de livros dedicados ao estudo da teoria marxista. Em 2025, a Coleção Marx-Engels ganhará mais dois volumes: Do socialismo utópico ao socialismo científico, de Friedrich Engels, e o primeiro tomo das Teorias do mais-valor, obra inacabada de Karl Marx que foi por muitos considerada como o Livro IV de O capital.

Enquanto esses lançamentos históricos não chegam, conheça o catálogo de obras já publicadas pela coleção – algumas das nossas edições foram reconhecidas como as melhores do mundo por Gerald Hubmann, ex-diretor da MEGA (Marx-Engels-Gesamtausgabe, instituição detentora dos manuscritos dos autores).

O capital [livros I, II e III], de Karl Marx
Em 2011, a Boitempo deu início a uma de suas maiores empreitadas editoriais: a tradução completa de O capital, a principal obra de maturidade de Karl Marx. Em março de 2013, em meio ao projeto MARX: a criação destruidora, um conjunto de eventos que reuniu milhares de pessoas para debater a atualidade de seu pensamento, foi lançado o primeiro livro, O processo de produção do capital. A tradução de Rubens Enderle, vencedora do prêmio Jabuti 2014, foi a primeira realizada no Brasil a partir do texto preparado no âmbito da Marx-Engels Gesamtausgabe (MEGA2). Além dos prefácios elaborados por Marx e Engels para as diversas edições da obra e notas, a edição da Boitempo conta ainda com extenso aparato crítico.
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Manuscritos econômico-filosóficos, de Karl Marx
Publicados apenas após sua morte, estes manuscritos foram escritos em 1844, quando Marx tinha apenas 26 anos. Neles, o filósofo alemão desenhou a crítica ética e política ao capitalismo, explorando a desvalorização humana em prol da mercadoria. Embora esboços, revelam a raiz da teoria do mais-valor.

Para a crítica da economia política, de Karl Marx
Publicada em 1859, esta é a primeira tentativa de Marx de publicar de maneira sistemática sua crítica da economia política. Trata-se do único volume que efetivamente veio à luz numa série prevista de seis livros. Oito anos depois, remodelado o projeto inicial, a concepção ganharia corpo na principal obra do autor, O capital, publicada em 1867. Para a crítica delineia os conceitos equivalentes ao que depois comporia a Seção I da obra-prima do filósofo alemão.

Grundrisse, de Karl Marx
Estes manuscritos, em tradução rigorosa feita diretamente dos originais em alemão, revelam a gênese da crítica do pai do socialismo científico à economia política. Escritos entre 1857 e 1858, são uma oportunidade ímpar para compreender, detalhadamente, o laboratório de estudos do renomado teórico.

Resumo de O capital, de Friedrich Engels
Mais de 150 anos após sua publicação, a obra-prima de Karl Marx continua suscitando debates acalorados. Friedrich Engels, o principal parceiro intelectual de Marx, buscou durante muitos anos de sua vida divulgá-la e publicá-la em outras línguas, além de ter sido o principal editor e organizador dos livros 2 e 3. Este livro traz um conjunto de resenhas feitas por Engels logo após o lançamento do primeiro volume de O capital, além de um manuscrito que o resume, uma espécie de guia para entender a obra, publicado pela primeira vez em português.

A ideologia alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels
Edição integral e esmerada de um marco do pensamento filosófico, esta versão traduzida diretamente do original alemão e baseada na MEGA2 revela a crítica afiada dos autores à ideologia dominante e a importância da práxis na transformação do mundo e do ser humano. Um clássico, agora em português.

“A edição da Boitempo de A ideologia alemã é uma das melhores edições do mundo, se não for a melhor de todos os tempos.”
Gerald Hubmann, diretor da MEGA2

Manifesto comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels
No final de fevereiro de 1848, foi publicado em Londres um pequeno panfleto que acabaria por se tornar o documento político mais importante de todos os tempos. Passado mais de um século e meio, a atualidade e o vigor deste texto continuam reconhecidos por intelectuais das mais diversas correntes de pensamento.

O 18 de brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx
Nesta célebre análise sobre o processo que levou da Revolução de 1848 para o golpe de Estado de 1851 na França, o filósofo alemão desenvolve o estudo do papel da luta de classes como força motriz da história e aprofunda sua teoria do Estado, sobretudo demonstrando que todas as revoluções burguesas apenas aperfeiçoaram a máquina estatal para oprimir as classes. Embasado por essa observação, Marx propõe, pela primeira vez, a tese de que o proletariado não deve assumir o aparato existente, mas desmanchá-lo.

A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Friedrich Engels
Um clássico da teoria social, este escrito de 1884 apresenta uma análise crítica dos modos de organização da vida social. Levando em consideração as relações entre os sexos para além da biologia, Engels trata da opressão de gênero e do papel do casamento e da autoridade masculina na constituição da sociedade moderna.


Mais de cento e quarenta anos após a morte de Karl Marx e cento e vinte da morte de Friedrich Engels, qual a contribuição intelectual desses dois filósofos para o Brasil e para o mundo? Muito se fala hoje, da esquerda à direita, de Marx e Engels, mas o quanto estamos de fato lendo suas obras?

Concebida pela Boitempo, principal editora de Marx e Engels no Brasil, para atingir um público amplo, a antologia O essencial de Marx e Engels propõe um mergulho de fôlego e amplitude sem precedentes nos principais pontos do projeto teórico desses dois autores. A organização, as apresentações de cada volume e as notas explicativas são de Marcello Musto, professor italiano com contribuições decisivas no florescente campo de estudo marxiano contemporâneo. A obra conta também com prefácio de José Paulo Netto e textos de apoio de alguns dos maiores especialistas brasileiros: Marilena Chaui, Jorge Grespan, Leda Paulani, Virgínia Fontes, Lincoln Secco e Alfredo Saad Filho. A edição é de Pedro Davoglio.  

O essencial de Marx e Engels reúne os textos mais importantes dos pensadores e revela cartas, manuscritos e rascunhos inéditos ou pouco conhecidos. Os três volumes, separados em escritos filosóficos, econômicos e políticos, contam com 16 partes temáticas e 66 extratos diferentes, incluindo obras publicadas, documentos e alguns escritos inacabados que foram anteriormente negligenciados. A obra revela, entre outras coisas, como estão equivocadas as interpretações que retratam Marx e Engels como pensadores eurocêntricos e economicistas, interessados apenas no conflito entre trabalhadores e capital.

Os volumes seguem uma linha cronológica que vai do início da década de 1840 até a morte de Engels, em 1895. Temas como a filosofia pós-hegeliana, a concepção materialista da história, método de pesquisa, trabalho e alienação, crise econômica, socialismo e muitos outros trazem ao público as ideias mais conhecidas e uma faceta pouco explorada da dupla. Em uma época em que as teorias de Marx e Engels voltam a ser investigadas em escala global, esta obra permite uma nova e mais completa interpretação geral de sua produção intelectual.

Além dos três volumes citados, a caixa contém o livreto Para ler Marx e Engels, com material complementar às obras publicadas no Brasil, como aulas, debates, palestras, itinerários de estudo e indicações de leituras de apoio.

Os primeiros dois mil leitores que comprarem a caixa no site da editora ou a reservarem em livrarias de todo o país ganharão um cartaz A2 exclusivo com o texto integral do Manifesto Comunista. Lembramos também que assinantes do Armas da Críticaclube do livro da Boitempo, têm 30% de desconto na compra de O essencial de Marx e Engels, bem como de todos os livros em nosso site.

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