Marx e o debate de gênero na I Internacional
Os primórdios da organização internacional da classe trabalhadora coincidiram com os desafios impostos ao movimento operário pela entrada expressiva de mulheres na força de trabalho industrial. Acuadas entre condições de trabalho ainda mais degradantes e a hostilidade de seus camaradas homens, "coube ao movimento operário feminino resolver uma questão básica" que permitiu fortalecer o movimento de trabalhadores de então. Em "As trabalhadoras na I Internacional", escrito em 1920, a revolucionária russa Inessa Armand retoma o processo de fundação da organização internacionalista e avalia o papel dos comunistas, especialmente de Marx e Engels, na luta por direitos e auto-organização das mulheres trabalhadoras.
Inessa Armand em 1916. Imagem: Wikimedia Commons.
Por Inessa Armand
Quando, há cinquenta anos, surgiu a primeira Associação Internacional dos Trabalhadores, a I Internacional, o movimento internacional dos trabalhadores encontrava-se nos primeiros estágios de seu desenvolvimento. Em alguns países, como na Rússia, esse movimento ainda não existia por completo; em outros, ele apenas se iniciava. Em nenhum lugar havia partidos políticos do proletariado – os socialistas compunham apenas pequenos grupos esparsos, que ainda não representavam uma grande força organizada. Os trabalhadores estavam reunidos em cooperativas, clubes, sindicatos. Mas naquela época os sindicatos existiam apenas nos países mais avançados e eram amplamente organizados apenas na Inglaterra.
É claro que as trabalhadoras despreparadas estavam ainda menos organizadas.
Desde o começo do século passado, o trabalho feminino se ajustou de modo crescente à produção, e no momento da criação da I Internacional as trabalhadoras já eram largamente utilizadas nas fábricas e oficinas.
De modo algum as trabalhadoras eram organizadas nem sabiam lutar contra o capital. Sendo assim, as condições de trabalho eram verdadeiramente tenebrosas.
Se os trabalhadores eram explorados e oprimidos, as trabalhadoras enfrentavam condições ainda piores em uma escala cem vezes maior. Com a utilização delas nas fábricas e indústrias, a situação de vida e a luta da classe operária foram significativamente precarizadas. O aconchego doméstico e a escassa vida em família do trabalhador foram destruídos, e as crianças foram privadas dos cuidados e da atenção maternos.
Junto com isso, o trabalho feminino se ajustou ao capitalismo exatamente como o trabalho mais barato, mais humilde, e os proprietários, na sua luta contra os trabalhadores, utilizavam o trabalho feminino como um meio de piorar as condições de trabalho ou de mantê-las no patamar anterior, assim como uma forma de dominar os trabalhadores insubmissos. Por exemplo, em caso de greve, os operários eram demitidos, e mulheres eram colocadas no seu lugar.
Dessa forma, em um primeiro momento, o emprego do trabalho feminino foi uma catástrofe para a classe trabalhadora. Não é à toa que nessas condições os operários mais simplórios e pouco conscientes tentaram combater o trabalho feminino, não deixavam que as mulheres entrassem nas fábricas e em seus sindicatos, quebravam as máquinas. Também não por acaso as trabalhadoras ainda mais simplórias e menos conscientes com frequência faziam o papel de “capacho”, de fura-greve.
Assim, por exemplo, na cidade inglesa de Halifax, em 1871, foi dito aos tecelões que seu salário diminuiria. Os trabalhadores entraram em greve, e mulheres foram contratadas em seu lugar. Em 1872, na cidade escocesa de Edimburgo, as trabalhadoras também assumiram os postos dos grevistas, e assim por diante.
No entanto, se a classe operária e principalmente sua ala feminina não estavam organizadas, nos países mais avançados, como França e Inglaterra, o proletariado já fazia oposição aos seus inimigos de classe, à burguesia e aos capitalistas e fazia seus primeiros combates de classe. É verdade que os trabalhadores, mesmo que de uma forma confusa e às cegas, começavam a identificar o caminho para sua libertação. Muito antes do surgimento da I Internacional, em 1848, operários parisienses tentaram pela primeira vez no mundo arrancar o poder da burguesia por meio da revolta armada, e as mulheres trabalhadoras combateram e morreram nas barricadas junto com os homens. Já os trabalhadores ingleses tentaram por meio da luta persistente conseguir direitos políticos e melhorar as condições de trabalho.
A revolta da classe operária francesa foi reprimida. Mas esse evento serviu de lição a todo o movimento operário e ajudou os trabalhadores de vanguarda a entender que, para sua libertação, eles devem lutar pelo poder. Depois vieram os anos pesados da reação. Mas, logo antes da criação da I Internacional, de novo sopraram os ventos da revolução por toda a Europa. Os operários ingleses conseguiram conquistar a jornada de trabalho de dez horas, e os de Rochdale (um lugarejo na Inglaterra) fundaram a primeira cooperativa operária. Em outros países, a luta dos trabalhadores despertava.
Já fazia algum tempo que os trabalhadores se conscientizavam da necessidade de se unirem internacionalmente para lutar contra a burguesia. A I Internacional foi fundada pelos trabalhadores de vanguarda franceses e ingleses, a quem depois se uniram os alemães, os suíços, os italianos, os espanhóis e os estadunidenses.
Dessa forma, a I Internacional foi a primeira tentativa consciente de associação internacional dos trabalhadores. Tal associação, encabeçada pelos nossos mestres Marx e Engels, logo estabeleceu para si objetivos revolucionários plenamente definidos.
A I Internacional buscou organizar os trabalhadores de diversos países para realizar a revolução. Ela quis ser o órgão, o instrumento dessa revolução e estabelecia como tarefa a luta política contra os burgueses, contra a reação e em prol do poder proletário. Era também necessário unir o movimento operário de forma ideológica. Os trabalhadores daquela época, mesmo os de vanguarda, não tinham claras as questões mais básicas da sua luta, não haviam se acertado em aspectos que hoje parecem completamente simples e óbvios a todo trabalhador e toda trabalhadora. Por exemplo: será preciso adotar a greve como forma de luta contra os burgueses? Será que os trabalhadores devem se organizar
em sindicatos? Por fim, eles não tinham os objetivos finais do movimento esclarecidos, a necessidade da luta pelo socialismo como o único caminho para a libertação dos trabalhadores e trabalhadoras.
Todos esses temas, além de muitos outros, como a relação dos trabalhadores com a guerra, com o Estado e com as cooperativas, foram discutidos em detalhes nos congressos da I Internacional. Os comunistas da época, liderados por Marx e Engels, viram-se obrigados a enfrentar um embate violento sobre cada uma dessas questões, de um lado, com os então mencheviques-proudhonistas, que se declaravam contra a greve, os sindicatos e o socialismo e, de outro lado, com os anarquistas.
Os comunistas conseguiram prevalecer em quase todos esses debates. Os congressos decidiram pela necessidade da luta com greve, pela criação de sindicatos, pelo socialismo. Dessa forma, os comunistas criaram as bases iniciais de um programa trabalhista que, em certa medida, até hoje orienta os trabalhadores e as trabalhadoras.
Mas coube ao movimento operário feminino resolver uma questão básica, que definiria toda a relação posterior dos operários com o movimento das operárias: o posicionamento dos operários em relação à presença da mão de obra feminina na indústria. Impôs-se aos comunistas resistir ao combate. O tema foi discutido no primeiro congresso da I Internacional, em Genebra. O trabalho feminino na indústria trouxe à classe operária tanto sofrimento e sacrifício que mesmo os trabalhadores de vanguarda se viram em um beco sem saída e não sabiam como lidar com esse fato. Os então mencheviques-proudhonistas apoiavam a ideia de que a participação das mulheres na produção era uma barbárie. Com intervenções tocantes, eles reivindicavam que a mulher permanecesse no aconchego doméstico para proteger e educar seus filhos e, em suas resoluções, propunham protestar contra o trabalho feminino como o mal que acarreta a degradação social, moral e física da classe trabalhadora.
Na resolução proposta por Karl Marx e aceita pela maioria do congresso, manifestava-se um ponto de vista completamente diferente. Era indicada não apenas a inutilidade, mas também o caráter reacionário de todas as tentativas de impedir a presença das mulheres na indústria ou de restituí-las à força ao ambiente doméstico. Sem dúvida, as condições do trabalho feminino são terríveis, e é preciso lutar vigorosamente contra as formas abomináveis do emprego dele; mas o trabalho feminino nas fábricas e indústrias é bom por si só, porque ele liberta a mulher do jugo familiar, leva a trabalhadora do círculo estreito das atribulações familiares para a arena ampla do trabalho social, capacita o desenvolvimento da independência de seu caráter, cria as condições imprescindíveis para transformá-la em uma combatente que guia a luta comum com os trabalhadores.
O trabalhador não deve lutar contra o trabalho feminino dessa maneira, mas deve organizar a trabalhadora e combater as difíceis condições enfrentadas por ela.
Enquanto os burgueses sempre reprimiram as mulheres, afastaram-nas de toda a vida social de forma intensa, enquanto a burguesia não encontrava palavras suficientes para expressar seu desprezo, com ditos como “o cabelo é longo, mas a inteligência é curta”, o trabalhador, desde os primeiros passos de sua luta consciente, desejou atrair as trabalhadoras para a luta, esclarecer sua consciência, organizá-las. E a I Internacional fez muito para despertá-las e atraí-las para a luta dos trabalhadores.
Com o atraso do movimento operário de então, a I Internacional não podia abranger de forma organizada as amplas massas trabalhadoras. Mas em relação às greves que se desdobravam em diversos países, a força e a inuência da Internacional continuaram a se expandir e se firmar. Entre 1866 e 1870, ocorreu uma série de greves por toda a Europa. A grande greve dos bronzistas, em Paris; greves volumosas na Inglaterra; as greves incessantes dos mineiros, na Bélgica; greves na Suíça. Em todas elas, a Internacional tomou parte de maneira bastante viva. Ela organizava para os grevistas a ajuda e o apoio dos trabalhadores de outros países, criando com isso as primeiras manifestações efetivas de solidariedade internacional de massas. Ela apoiava os grevistas na imprensa, estimulava-os, ajudava-os na defesa no tribunal, enviando-lhes advogados etc.
Após essas greves, séries inteiras de trabalhadores de sindicatos declaravam sua adesão à Internacional.
As trabalhadoras tomaram parte em todas essas greves de maneira vívida e também aderiram à Internacional. Em Ricamarie, as torcedoras de seda que entraram em greve recorreram ao auxílio da organização, que as ajudou. Depois disso, elas ingressaram na Internacional. As trabalhadoras das cidades francesas de Lyon e Rouen procederam da mesma forma. Na época das grandes greves dos mineiros na Bélgica, nas quais se envolveram tanto os trabalhadores quanto as trabalhadoras, um e outro declararam sua filiação à Internacional. E assim foi em outros locais.
Dessa forma, aos poucos o movimento revolucionário se alastrou por toda a Europa. Muitos dos trabalhadores de vanguarda esperavam uma explosão revolucionária próxima. Marx e Engels também
aguardavam a revolução.
Mas em 1870 começou a guerra entre a Alemanha e a França. Teve início um momento de enorme prova de solidariedade internacional. Os trabalhadores de vanguarda resistiram inteiramente à experiência. É verdade que eles não podiam impedir a guerra, pois as massas ainda eram demasiadamente despreparadas e desorganizadas para tal. Mas os trabalhadores de vanguarda alemães e franceses responderam ao conflito com um protesto intenso, que ganhou a adesão de trabalhadores de outros países.
A guerra terminou com a derrota da França e, depois, a revolta dos trabalhadores franceses, que levou à Comuna de Paris.
A Comuna foi um dos maiores acontecimentos na história do movimento trabalhador.
Os trabalhadores parisienses, revoltados com a traição da burguesia francesa, insurgiram-se, tomaram o poder nas próprias mãos e formaram o primeiro governo de trabalhadores, que consistia em representantes dos trabalhadores e dos pobres urbanos e se parecia muito com os nossos sovietes. Essa era a Comuna. Os trabalhadores mantiveram o poder por dois meses. Mas então os burgueses franceses, com a ajuda dos alemães, conseguiram afundá-la em sangue.
Desde o início, as trabalhadoras parisienses participaram ativamente dessas lutas e da construção da Comuna. Com seu ânimo e sua firmeza, apesar dos tempos bastante difíceis — Paris tinha acabado de atravessar a guerra e o cerco, e os trabalhadores aguentaram privações severas —, elas apoiaram a Comuna de todas as formas, e quando foi preciso defendê-la, quando os burgueses, com crueldade sem precedentes, passaram a reprimi-la, as trabalhadoras formaram grupos de combate que, lado a lado com os trabalhadores e de armas nas mãos, lutaram heroicamente e morreram em nome da Comuna.
A Comuna mostrou qual será o poder dos trabalhadores, o que eles devem fazer quando estiverem no comando. A luta da Comuna foi a luta pelo poder do trabalhador, sem o qual o proletariado não conseguirá sua libertação. Ao participar das batalhas da Comuna, a trabalhadora se uniu à grandiosa revolução internacional de forma indissolúvel, marcou a nobre luta do proletariado pelo comunismo com seu sangue, que a bandeira vermelha do trabalho também exibia já naquela época.
Com a extinção da Comuna, a I Internacional não durou muito tempo e se reuniu pela última vez no ano de 1875.
Em uma de suas últimas conferências, ocorrida em Londres, em 1871, foi retomada a questão sobre as trabalhadoras e sua organização. Além de sua utilização na seção da Internacional, decidiu-se pela criação de associações especiais para elas. Com a última proposta, é evidente que pensavam estabelecer um contrapeso às associações feministas servis, que as mulheres burguesas começavam então a preparar para as trabalhadoras.
* Texto publicado na antologia A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética, organizada por Graziela Schneider. A tradução é de Renata Esteves.
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A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética, organizado por Graziela Schneider
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Margem Esquerda #28 | Feminismo, marxismo e a Revolução Russa
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Kollontai: desfazer a família, refazer o amor, de Olga Bronnikova e Matthieu Renault
Figura central na Revolução Russa de 1917, Aleksandra Kollontai foi pioneira do feminismo socialista e a primeira ministra de Estado do mundo contemporâneo. Esta biografia que recupera a vida e a obra dessa revolucionária russa, com destaque para suas críticas às relações de gênero. Os autores apresentam as dificuldades que Kollontai enfrentou no partido referente às questões sobre as mulheres e não deixam de mostrar aspectos contraditórios da biografada.
Antes de a contrarrevolução sexual varrer os avanços pós-1917, Kollontai foi figura central em importantes decisões, como o direito ao aborto e a facilitação do divórcio para as mulheres. Sua trajetória política sempre foi contrária ao senso comum de que questões relativas ao gênero deveriam ser problemas periféricos: “Kollontai não deixaria de demonstrar que a luta pela igualdade homens-mulheres no plano econômico e social e a reinvenção das formas do amor e da sexualidade eram indissociáveis, e que sua trama delineava um programa revolucionário completo, dotado de uma autonomia que não impedia – ao contrário, pressupunha – sua articulação estreita com as ‘tarefas do proletariado’. Por essa razão, a satisfação dessas reivindicações não podia ser adiada eternamente sem comprometer o futuro do próprio comunismo”, escrevem Bronnikova e Renault no prólogo.
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