Cinema que escuta, cinema que diz: para conhecer a obra de Eduardo Coutinho

Foto: Eduardo Coutinho ao lado de Elizabeth Teixeira (via WikiCommons).

Por Diogo Dias

O nome de Eduardo Coutinho circula entre os cinéfilos, estudiosos e interessados em cinema documental com facilidade. Ele é reconhecido internacionalmente pelos seus trabalhos, porém, torna-se um estranho quando se fala do grande público. As razões são várias, mas podemos imaginar que o espectador brasileiro — e talvez o espectador em geral — tende majoritariamente a não levar o documentário tão em conta quanto o cinema de ficção. O desnível de prestígio entre o cinema narrativo de ficção e o documentário é um obstáculo que Coutinho nos ajuda a superar.

Sua filmografia teve como principal característica essa passagem de uma forma mais comum de narrar uma história para as experimentações que tentavam encontrar as histórias no nascedouro, na própria matéria social. Dos trabalhos que realizou como roteirista de ficção, a exemplo de A falecida (1965, Dir. Leon Hirszman) e Dona Flor e seus dois maridos (1976, Dir. Bruno Barreto), Coutinho vai em direção às formas narrativas que transitam entre as imagens de uma realidade recortada e a sua carga ficcional.

O projeto inicial de seu filme mais celebrado é um exemplo disso. Cabra marcado para morrer (1984) foi pensado como uma ficcionalização da história da morte de João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas, assassinado em Sapé, na Paraíba, em 1962. Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro, interpretaria a si mesma, e o drama contaria com os camponeses como atores. Porém, o golpe militar de 1964, ano de início do projeto, interrompeu as gravações, que só foram retomadas em 1981. Essa suspensão teve uma importante influência no trabalho de Coutinho, já que durante 1975 e 1984 sua atuação no jornalismo da Rede Globo como roteirista, editor e diretor do Globo Repórter lhe dá experiência com as matérias factuais, com o dinamismo visual e narrativo da reportagem, além de condições financeiras para concluir O Cabra, que se transforma em um documentário seminal.

Hoje tão elogiado, o hibridismo entre ficção e documentário parece ter sido sempre o mote de Coutinho. Seja como colaborador de nomes do Cinema Novo, como Hirszman ou Nelson Pereira dos Santos, seja como documentarista original, o real para ele tem sempre algo de invenção, em que a subjetividades de quem filma e de quem é filmado aparecem, se desvelam na tela. Para isso, as técnicas do seu cinema nunca buscam o ilusionismo. Coutinho aposta na radical aparência da vida como ele a encontra. São seus personagens, seus modos de vida, os ambientes em que vivem, os objetos que os cercam e, principalmente, o que se diz sobre isso tudo que fazem extrapolar para o audiovisual o sentido que se tenta dar para a vida. A câmera de Coutinho só se movimenta quando o personagem solicita, não quando o diretor ordena. O material bruto é quase autônomo. O diretor entra na seleção e na montagem. Aí é que a subjetividade de quem filmou diz alguma coisa.

Sugiro, portanto, que o diálogo é o princípio formal dos filmes autorais de Coutinho. Pois justamente nos momentos em que o realizador abre mão da sua inventividade para que seus interlocutores-personagens assumam o discurso é que aparece a sua assinatura. Estamos falando de um cinema profundamente humanista, no qual a técnica é colocada em segundo plano. Ela serve aqui como um meio de transmissão de um momento do real, de um momento de encontro entre pessoas. O diálogo que acontece entre Coutinho e seus personagens-interlocutores se torna filme no procedimento de expor o que os personagens-interlocutores tem a dizer, na montagem baseada na escuta atenta e na relevância do que foi dito, e por fim, na abertura do diálogo com novos interlocutores, nós, o público. Afinal, os filmes de Coutinho acabam como começam: em aberto.

O desprendimento técnico não significa desleixo. Há, sim, um apuro estético em seus filmes. Mas se uma buzina ou helicóptero vazar durante uma fala importante, se a pessoa se levantar saindo de quadro no meio da entrevista ou se chora interrompendo o raciocínio, o material ainda pode ser utilizado. Essa exposição do fazer fílmico também constitui um estilo marcado de Coutinho. Os enquadramentos incluem com frequência equipamentos como monitores, microfones, a câmera refletida no espelho. Além da equipe de filmagem e do próprio Coutinho, que é uma espécie de personagem onipresente cuja aparição passa a ser aguardada. A sua forma documental do diálogo inclui os corpos que dele participaram. A voz do diretor é literalmente conhecida e não está apenas na sua intervenção artística1.

Podemos encontrar, portanto, uma forma bastante complexa por trás de uma aparente simplicidade. O que inicialmente talvez pareça um conjunto de entrevistas feitas de maneira improvisada, ou ausentes de conceitos visuais prévios, mostra-se na verdade como experimentos fílmicos que carregam posições éticas e estéticas saturados de conteúdo histórico, social, cultural, subjetivo, político. Esse é o seu jogo de cena. Esquivando-se do dualismo entre ficção e realidade, Eduardo Coutinho inscreve seus filmes entre as grandes obras do cinema mundial.

Notas

  1. Bill Nichols se refere à voz do diretor como o seu ponto de vista expresso na sua elaboração fílmica. Segundo ele os documentários sempre dizem alguma coisa sobre os assuntos dos quais tratam. Ver Introdução ao Documentário. São Paulo: Papirus, 2005. ↩︎


Cabra marcado para morrer (1984)

Imagem: Divulgação

Em parceria com o Centro Popular de Cultura da UNE (CPC-UNE), Coutinho viaja ao Nordeste para registrar as atividades das Ligas Camponesas, movimento que deu origem à luta pela terra nos anos 1960. Para chamar a atenção para a violência dos latifundiários, o filme buscava retratar o assassinato de João Pedro Teixeira, líder camponês, contando com a participação dos próprios trabalhadores e da viúva, Elizabeth Teixeira, em uma narrativa ficcional baseada nos fatos reais. Porém, a equipe de filmagem é surpreendida pelo golpe militar de 1º de abril de 1964 e foge para Recife deixando os rolos de filme em Vitória do Santo Antão, que serão recuperados por Coutinho somente após a Lei da Anistia (1979). Em 1981, o filme é retomado, porém a ideia era encontrar e colher depoimentos dos camponeses que haviam participado da primeira rodagem sobre os anos que se passaram sob a ditadura. Cabra marcado para morrer é sem dúvida um acontecimento do cinema mundial, porque contém em si o registro da repressão histórica que o golpe militar empregou contra as possibilidades revolucionárias que nasciam no campo brasileiro.


O fio da memória (1991)

Imagem: Divulgação

Ainda sob uma forma mais tradicional do documentário, Coutinho busca investigar e informar sobre a constituição da cultura africana no Brasil. Com o conservador recurso à narração em off (nas vozes intercaladas de Milton Gonçalves e Ferreira Gullar), o filme passa por eventos históricos, personagens da resistência negra contra a escravidão, a consciência crítica da história pós-abolição, o sincretismo religioso, a música e as discriminações raciais no Brasil daquele momento. Sobrepondo essa forma mais tradicional, contudo, aparece o recurso às memórias do artista Gabriel Joaquim dos Santos, filho de um ex-escravizado que fez de sua casa um grande laboratório escultural. Ele deixou anotações que são interpretadas pela voz de Milton Gonçalves. Enquanto o ator assume o papel em primeira pessoa, Ferreira Gullar é a voz em terceira pessoa, do narrador “universal” da história. Uma síntese de como a história e a memória ainda eram vistas como coisas diferentes. Como seu trabalho demonstra, Coutinho se interessa mais pela riqueza da memória e contribui para que ela também seja tomada como história.


Santo forte (1999)

Imagem: Divulgação

A cultura popular negra retratada em O fio da memória (1991) ganha outra dimensão em Santo forte. Coutinho vai à favela Vila Parque da Cidade, no Rio de Janeiro, e colhe depoimentos sobre a religiosidade de alguns moradores. Já em 1999 as pessoas falam da apropriação de elementos da umbanda pelas igrejas evangélicas, como os rituais de possessão e as manifestações de entidades em danças e línguas divinas. O sincretismo religioso em suas camadas históricas vai ganhando formas cada vez mais complexas e as conversas registradas pelo documentário mostram que, por mais misteriosos que possam ser os fenômenos espirituais, há sempre uma tentativa de dar sentido a eles. O distanciamento pessoal de Coutinho com a religião fez de Santo forte um marco para o seu cinema: a ênfase dada aos personagens é maior e os depoimentos ganham em duração e proximidade. Foi nesse filme que procedimentos como os planos fechados nas fisionomias das personagens ganham uma carga cinematográfica que foi muito explorada nos trabalhos posteriores do cineasta.   


Edifício Master (2002)

Imagem: Divulgação

Quem ouve falar de Edifício Master sem ter visto o documentário pode se perguntar o que teria acontecido de especial nesse condomínio para que ele virasse um filme, mas foi justamente por não ser um edifício marcante que Coutinho o escolheu. A equipe morou lá durante as filmagens e batia de porta em porta para conversar com os moradores e colher histórias interessantes. O corte final do filme deixa claro que o interessante para Coutinho pode ser encontrado na vida mais banal, aparentemente monótona, mas que com alguma curiosidade, paciência e muita generosidade na escuta, revela algo muito profundo. Edifício Master é ao mesmo tempo um espelho para o cidadão comum e um momento de contemplação do outro.


Peões (2004)

Imagem: Divulgação

Partindo de fotografias e filmagens das grandes greves de 1979 e 1980, Coutinho busca as histórias dos rostos anônimos que compartilharam aquela luta com o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, que à época das gravações ainda concorria ao seu primeiro mandato. Peões é um documentário metalinguístico que tem origem nos registros documentais das greves. Evoca os filmes ABC da greve (Leon Hirszman, 1979-90), Greve (João Batista de Andrade, 1979) e Linha de montagem (Renato Tapajós, 1982) para estabelecer uma comparação entre o discurso visual do documentário que buscava narrar as greves e o desenrolar histórico narrado pelos próprios trabalhadores décadas depois dos acontecimentos. O doce-amargo de Peões fica por conta de um tom nostálgico e vitorioso, em razão da iminente vitória de Lula em 2002, mas que também carrega a evidência de que a vida prometida pela democracia ainda não cumpriu suas promessas. Os peões que contam suas histórias foram os grandes responsáveis pelo peso político e histórico das greves no ABC, mas ainda não colheram os frutos nem os louros dos seus direitos.


Jogo de cena (2007)

Imagem: Divulgação

O ponto alto da carreira madura de Coutinho é Jogo de cena. O filme representa um momento de reflexão profunda sobre as possibilidades artísticas do documentário. Nele, Coutinho elabora a tese de que tanto o efeito narrativo do entrevistado que conta sua “história real” quanto o ofício da interpretação de uma história podem se fundir — ou se confundir. Para demonstrá-lo, Coutinho coloca em cena personagens reais e atrizes profissionais, conhecidas e desconhecidas, em um processo de montagem que repete histórias contadas por pessoas diferentes, testando a capacidade do público de identificar a autenticidade ou o artifício nos depoimentos. Com isso, o filme alcança um resultado extraordinário ao chegar no limiar entre realidade e ficção, como uma afirmação do próprio trabalho de Coutinho.


As canções (2011)

Imagem: Divulgação

As músicas estão sempre presentes nos filmes de Coutinho. Em As canções ele amplia seu espaço de escuta, pois além da fala, se propõe a ouvir a voz das pessoas em sua maneira de cantar. O tema da subjetividade dos anônimos permanece forte e ganha em sensibilidade ao perguntar pela relação das pessoas com as canções que marcaram momentos importantes das suas vidas. Mais importante do que perguntar “qual é a sua música preferida?” é saber: por que essa música o toca tanto? O filme é um emocionante retrato da relação da classe trabalhadora com a música popular e as formas de subjetivação dos traumas, sofrimentos, lutos. As canções é simbólico ao expressar a visão do que é um cinema político para Coutinho. Para ele, era preciso escutar as classes trabalhadoras falarem a respeito de todas as suas camadas, mesmo as mais íntimas.


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As sete faces de Eduardo Coutinho, de Carlos Alberto Mattos
Análise reveladora que entrelaça a vida e a obra de um cineasta icônico, apresentando as múltiplas facetas deste inspirado criador. Das raízes teatrais ao cinema inovador, passa também pelas manias e obsessões, em um mergulho íntimo em sua história pessoal e cinematográfica. Observando as transversalidades e as conexões no tempo da obra completa — empreitada inédita —, o autor revela as diferentes faces do realizador. Coutinho aparece aqui como diretor de teatro e cinema, roteirista, ator, crítico e até autor de horóscopo.


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Diogo Dias é doutorando de filosofia na Unifesp, onde estuda teoria crítica do cinema no Brasil

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