13 de maio de 2025: Reparação, já!
"No dia seguinte, nas décadas seguintes, pouco se fez para superar as consequências de aproximadamente 388 anos de escravidão no país. Ao contrário disso, muito se pensou nos dias que antecederam o 13 de maio de 1888: por medo de que a maioria negra do país assumisse os rumos do seu futuro por autodeterminação, os poderosos colonos e os senhores de escravos fizeram com que diversas leis preparassem o Brasil para cercear e manter imóvel os direitos daqueles que se tornariam 'livres'."

Imagem: Arquivo do Movimento Negro Unificado (MNU).
Por Simone Nascimento
Semana passada eu participei de uma roda de conversa na ETEC Tiquatira, na Zona Leste da cidade de São Paulo, que tinha como tema o 13 de maio. Um professor chamado Marcos, muito engajado na efetivação das Leis nº 10.639 e 11.645, que deveriam tornar obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, incluindo essas disciplinas no currículo oficial das escolas e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, me convidou para conversar com os estudantes.
O professor Marcos fez isso sem que a lei tenha sido regulamentada e implementada na educação brasileira, fez por compromisso com a luta antirracista na educação. Ele é um dos centenas de milhares de negros que seguem resistindo e pautando a necessidade de avançarmos com o fim do racismo no Brasil, 137 anos após a abolição.
Os adolescentes trouxeram reflexões sobre a violência policial, o racismo na sala de aula, as dificuldades enfrentadas no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, fizeram uma linda apresentação cultural e uma esquete de teatro falando de orixás e racismo religioso. Dilemas intergeracionais do Brasil. Muitos naquele auditório da Escola Técnica refletiram pela primeira vez sobre o fato de que a Lei Áurea de 1888 tinha apenas 2 artigos:
Art. 1º É declarada extinta, desde a data desta Lei, a escravidão no Brasil.
Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário.
E como fala a canção de Lazzo Matumbi:
“No dia 14 de maio, eu saí por aí.
Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir.
Levando a senzala na alma, eu subi a favela”.
No dia seguinte, nas décadas seguintes, pouco se fez para superar as consequências de aproximadamente 388 anos de escravidão no país.
Ao contrário disso, muito se pensou nos dias que antecederam o 13 de maio de 1888: por medo de que a maioria negra do país assumisse os rumos do seu futuro por autodeterminação, os poderosos colonos e os senhores de escravos fizeram com que diversas leis preparassem o Brasil para cercear e manter imóvel os direitos daqueles que se tornariam “livres”.
Estima-se que mais de 4,8 milhões de africanos foram trazidos para o Brasil — o maior número entre todos os países das Américas. Em 1888, ano da abolição da escravidão, estima-se que havia cerca de 15 milhões de habitantes no Brasil, sendo aproximadamente 6 milhões de pretos ou mestiços (pardos) — o que representava mais de 40% da população. Os dados raciais do século XIX não seguem as mesmas categorias atualmente utilizadas pelo IBGE (preto, pardo, branco etc.), e as fontes usavam termos como “livres”, “ingênuos”, “pardos”, “mestiços”, “crioulos” — o que exige interpretações cruzadas, mas indica que já éramos a maioria da população brasileira. Depois, com a conquista do movimento negro do ítem “cor” nos questionários do IBGE e a autodeclaração, no século XXI chegamos ao marco de sermos 56% da população brasileira e, mesmo assim, seguimos nos maiores índices de ausência de direitos.
Como bem formulou Abdias do Nascimento, vivemos as consequências do genocídio, onde leis como a Lei de Terras de 1850, que impedia ex-escravizados de acessarem a terra, pois determinava que só poderia ter a propriedade de um terreno quem o comprasse, favoreceram a elite agrária branca e estruturaram a desigualdade fundiária até hoje. Pouco antes, em 1827, na regulamentação das escolas de alfabetização no Brasil, pessoas escravizadas foram proibidas de frequentá-las. Leis como essas moldaram o bloqueio ao acesso a direitos básicos, que até hoje figuram entre os índices de desigualdade no país.
Assim, no dia seguinte ao da abolição da escravatura no país, sem reparação às vítimas dos crimes da escravidão, os ex-escravizados e suas gerações futuras viveram e ainda vivem os impactos da ausência de um 3º artigo:
“O Estado brasileiro promoverá reparação histórica a todas as vítimas da escravidão e seus descendentes”
Esse artigo nunca existiu na lei, muito pelo contrário. Na sequência da Lei Áurea, muito se pensou em como controlar com repressão e violência os efeitos do abismo social. Por isso, o movimento social negro brasileiro se refere ao 13 de maio como o dia da falsa abolição, ou da abolição inconclusa e inacabada.
Com o Código Penal de 1890, olharam para a miséria do nosso povo, sem pensar em como superá-la; com a criação de postos de trabalho remunerado, preferiu-se criminalizar a “vadiagem” de quem “não tivesse ocupação” ou “meio de subsistência”, o que atingia diretamente ex-escravizados sem emprego formal ou moradia fixa; aos que ousassem praticar e preservar nossa cultura, criminalizou-se a prática da capoeira com penas de prisão e trabalhos forçados; e aos que pedissem ajuda, foi proibida a “mendicância”, atingindo os mais pobres — majoritariamente negros — excluídos das oportunidades econômicas e assim impedidos até de mendigar.
Ou seja, o racismo foi por mais tempo uma punição institucionalizada por leis contra a população negra do que um crime no Brasil. A criminalização do Racismo só foi possível com a Constituição de 1988, um século depois da abolição, e tipificado pela Lei nº 7.716 de 1989.
Imagem: Arquivo do Movimento Negro Unificado (MNU).
É por isso que em em 1988, no centenário da abolição, com um outdoor e durante uma passeata, o Movimento Negro Unificado exibiu a frase “A princesa esqueceu de assinar nossa carteira de trabalho”. O slogan criticava o fato de a abolição da escravidão não ter sido acompanhada de medidas que garantissem direitos trabalhistas e econômicos aos ex-escravizados. E permanece tão atual quando vivemos a discussão da redução da jornada de trabalho e o fim da escala 6×1. Diante das jornadas exaustivas e de tanta precarização, podemos atualizar a frase para: “A princesa esqueceu de assinar nossa carteira de trabalho, e o patrão tem nos explorado na escala 6×1”. Muitos seguem até sem carteira, no trabalho informal e com a pejotização das vagas, sem direitos, sem proteção, sem salários dignos para a maioria.
E até os dias de hoje incomoda pra caramba quando botamos o dedo na ferida, quando queremos que justiça social seja debatida com a transversalidade da superação do racismo. Alguns nos chamam de identitários, de divisores de uma classe que tem raça, gênero, orientação sexual e território. Mas a verdade é que políticas públicas que ignoram essa composição de quem somos falham na justiça social.
Muitos políticos e pessoas responsáveis por pensar as leis no Brasil consideram ultrapassado quando pautamos com tanta centralidade o racismo, mas a verdade é que somente a Reparação pode superar a fundação escravagista do Brasil. Até lá, estamos agonizando com uma fratura exposta, um genocídio de séculos!
Na ausência disso, não superaremos os abismos sociais no Brasil nunca, porque faltam reformas estruturantes.
Acabar com o privilégio de elites brancas e racistas é um desafio necessário para atingirmos a justiça no Brasil. Por isso é tão importante o avanço em curso do imposto mínimo aos mais ricos e a taxação das grandes fortunas, para que esse montante possa causar algum avanço social no país. E olha que ainda será muito pouco!
De acordo com Yedo Ferreira, militante histórico do Movimento Negro Unificado, o Estado deve ser responsabilizado por ter permitido a escravização do povo negro e a “reparação é negociação e tem que ter sempre um resultado coletivo, jamais individual”.
Sendo assim, é necessário um processo de diálogo e formulação junto à comunidade negra brasileira para construção de um plano de reparação histórica no Brasil. Um exemplo concreto é que a Lei de Terras só pode ser efetivamente revogada com uma grande reforma agrária e popular.
E passados 137 anos, ainda vivemos a criminalização de nossa cultura, com projetos como da “Lei Anti-Oruam”, aprovada em diversas casas legislativas do Brasil visando mais uma geração de criminalização da cultura negra e periférica, em especial o funk e o rap. Ou ainda os altos índices de homicídio policial contra a população negra no Brasil. Em 2024 o Banco do Brasil foi investigado pelo Ministério Público Federal (MPF) e reconheceu o seu papel na escravidão durante o século XIX, incluindo o financiamento do comércio de pessoas escravizadas e a utilização de escravizados como garantia em empréstimos, mas o que será feito a partir disso?
O Governo Federal, em nome do Estado brasileiro, pediu publicamente desculpas à população negra pela escravização das pessoas negras e seus efeitos através da Ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, mas o que será feito?
O presidente de portugal, Marcelo Rebelo de Souza, afirmou que o país foi responsável por crimes cometidos durante a escravidão e sugeriu a necessidade de reparações, mas o que será feito?
Por isso, achei fundamental ver entre os eixos da V Conferência Nacional da Igualdade Racial, que ocorrerá neste ano, o tema “Reparação”. Assim como veremos o mote por “Reparação e Bem Viver” tomar as ruas com a 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras, em 25 de novembro de 2025, exigindo direito ao futuro para nossas comunidades inteiras!
Em 2025, 137 anos após a abolição no país que mais escravizou pessoas negras no mundo, é hora do Estado brasileiro avançar na construção da Reparação histórica.
E vejamos que até mesmo nas ações afirmativas o Estado brasileiro ainda falha. Retomando o que disse no início deste texto, as Leis nº 10.639 e 11.645, que deveriam tornar obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena no currículo oficial das escolas e que fazem parte da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ainda precisam ser efetivamente implementadas. O Estatuto da Igualdade Racial ainda não é seguido na sua concretude!
Tenho ouvido ao longo dos anos ideias e caminhos possíveis, Yedo está certo quando diz que o Estado brasileiro precisa negociar conosco essa dívida, com projetos coletivos, por meio da construção por exemplo de um Fundo Nacional por Reparação. Imagine a universalização da educação e saúde, uma reforma agrária e urbana, a titulação de todas as terras quilombolas, a erradicação da pobreza, a desmilitarização das polícias, a democratização da comunicação, o desencarceramento em massa, a preservação e reconhecimento dos povos de terreiros. Tudo isso é possível!
O Brasil, como aquele que foi o maior escravocrata do mundo, pode dar exemplo aos outros que escravizaram, exigindo também de Portugal sua responsabilidade com ações concretas de reparação, ao mesmo tempo que avança em ações concretas com países do continente africano, que tanto o mundo deve.
Neste dia 13 de maio de 2025, não esperem nada menos de nós do que a exigência de Reparação, já!
***
Simone Nascimento é feminista negra, jornalista formada pela PUC-SP e mestra pela USP. Está coordenadora estadual do Movimento Negro Unificado SP e codeputada estadual da Bancada Feminista do PSOL na ALESP.
PARA SE APROFUNDAR NO TEMA
A história da escravidão, de Olivier Pétré-Grenouilleau
Uma análise abrangente da escravidão que vai além de sua organização produtiva, explorando suas raízes e legados, como o racismo. O autor lança luz sobre a evolução desse sistema e sua persistência na sociedade moderna, levantando questões essenciais sobre sua história e impacto duradouro.



Mulheres, raça e classe, de Angela Davis
Profundamente analítico, traça as interseções de raça, classe e gênero na luta contra opressões. A autora desafia visões simplistas, expondo a centralidade das mulheres negras. Sua crítica à esquerda ortodoxa e reflexões sobre representatividade são atuais.
Uma autobiografia, de Angela Davis
Relato emocionante de uma vida dedicada à luta por justiça e igualdade. Ícone dos movimentos negros e feministas, a autora compartilha sua história marcante, revelando as injustiças que enfrentou e as raízes profundas de sua resistência. Sua narrativa é uma fonte inspiradora de força e determinação.
Da mesma autora, leia também A liberdade é uma luta constante.
O que é identitarismo?, de Douglas Barros
Articulando filosofia, teoria social e psicanálise, Douglas Barros apresenta uma análise que reconhece a necessidade histórica das lutas rotuladas como identitárias, sem perder de vista as disputas e capturas a que estão sujeitas no atual estágio de acumulação capitalista. Nos termos de Deivison Faustino, “uma valiosa contribuição a um debate novo, que pela primeira vez, encontra uma análise à altura.”



Como a Europa subdesenvolveu a África, de Walter Rodney
Livro do historiador e líder teórico do pan-africanismo Walter Rodney que detalha o impacto da escravidão e do colonialismo na história da África. Escrita em 1972 e publicada agora pela primeira vez em língua portuguesa, a obra, considerada uma obra-prima da economia política, argumenta que o inabalável “subdesenvolvimento” africano não é um fenômeno natural, e sim um produto da exploração imperial do continente, prática que continua até hoje.
Os jacobinos negros, de C. L. R. James
Narrativa minuciosa da vitoriosa insurreição dos escravos em São Domingos, hoje Haiti, em 1791. Desmascara mitos e revela a luta incansável por liberdade e igualdade, explorando o legado e os desafios pós-independência. Para compreender o impacto duradouro da revolução haitiana na América Latina.
A nova segregação: racismo e encarceramento em massa, de Michelle Alexander
Um olhar crítico e impactante sobre o sistema prisional dos EUA e seu profundo vínculo com o racismo estrutural. A autora revela a continuidade do controle racial e da segregação, questionando a justiça e lançando luz sobre um sistema de subcastas perpetuado pelo encarceramento em massa.
Excelente texto! Disseminei para amigues. Força e paz aos pretos! Abs.
CurtirCurtir
Excelente texto! Disseminei para amigues. Força, respeito, justiça e paz aos pretos e pretas do Brasil, a todos nós descendentes dos africanos. Abs.
CurtirCurtido por 1 pessoa