Luis Felipe Miguel e a seletividade penal
“Se”, como o próprio Luis Miguel afirma, “as facções exercem uma forma de tirania sobre as favelas — 'comunidades', para usar o eufemismo bem-pensante — que controlam”, o que impede o professor de ver o funk como um sintoma que desnuda esse processo? Por que diminuir o fato de que a criminalização do funk é mais uma herança dessa prática estatal-administrativa claramente seletiva na aplicabilidade da pena?

Foto: Tânia Rego / Agência Brasil
Por Douglas Barros
O velho Freud elaborou uma noção revolucionária que organiza o modo pelo qual nossas relações são atravessadas: a transferência. A ideia central nessa categoria, que fará história na psicanálise, é a de que usamos o outro como suporte de nosso desejo. Transferimos a ele parte da responsabilização por aquilo que gostaríamos de realizar. A transferência é, portanto, uma desresponsabilização direta pela escolha, já que a fazemos mediante a aceitação do outro. Isso nos alivia, pois se alguma coisa der errado podemos pôr no outro a culpa. Claro, trata-se sobretudo de uma infantilização do eu. Algo, como diz Freud, a ser manejado durante um tratamento.
Talvez devêssemos evitar a transferência não só no setting clínico, já que ela também se baseia num processo de identificação organizado pelos nossos gostos e gozos, hoje capturados pelos algoritmos. Identificamos no outro o que nos falta, é ele quem estabiliza nossa identidade imaginária dando suporte àquilo que acreditamos ser — e, assim, essa relação de transferência serve para constituir nossas identidades provisórias.
Quando li os comentários “texto excelente”, “foi no ponto”, “quanta lucidez” acerca do último artigo de Luis Felipe Miguel, intitulado “Funk, stand up e apologia ao crime”, logo o velho Freud se encarnou: é curioso como a identidade ego-gregária se realiza na internet. O texto é tão ruim — por ser formalista, legalista e sintomático em vários sentidos — que conclui que o grande “anti-identitário” de nossa época tinha constituído ao redor de si um séquito de seguidores que transferiram para ele o lugar da verdade.
Se, porém, o lugar da transferência deve ser manejado — trabalhando uma contratransferência permanente — não só no setting clínico, mas também na crítica, peço-lhe que não endosse as palavras aqui escritas a partir do lugar da identificação, mas reflita e as coloque em suspensão para exame. Me tire do lugar da verdade e me coloque no lugar da dúvida, que doravante vou esboçar uma tentativa de exame crítico realizando um tête-à-tête com o “excelente” texto de Miguel.
Como uma ideia fixa pode levar ao legalismo seletivo
O ritmo da prosa de Luis Miguel no seu substrack é sempre confessional e, por isso, envolvente. Tem-se o pressentimento de estar próximo do autor. Há algo que endereça uma identificação por parte do leitor — um recurso de escrita que, aliás, virou moeda corrente por ser menos impessoal e mais direto. De início ele confessa: “Eu nunca tinha ouvido falar nem do MC Poze do Rodo, nem de Leo Lins. Não sou ligado nem em funk, nem em stand up.”
Quem não se identifica? Aliás, muitos de seus leitores também nunca tinham ouvido falar de ambos, assim como não sabiam da diferença entre o Funk e o TRAP. Mas Miguel prevê que por isso será chamado de elitista; o mundo o condenará pelo presentismo que “faz com que só importe o hit do momento e se ignore o anteontem como passado remoto.” Que mundo terrível é esse, hein? Concordo.
Depois de antecipar suas desculpas, o caminho está livre. Possível vítima do cancelamento identitário, Miguel se coloca como aquele que quer apenas falar a verdade para uma esquerda que perdeu prumo. O tom moralista e politicista de um reconhecido marxista, porém, só evidencia o quão pernicioso é abandonar a centralidade crítica na economia política.
E assim ele inicia: “no caso de Poze do Rodo, dois fatos se impõem como acima de qualquer dúvida. O primeiro é que sua prisão foi tornada espetáculo, em desrespeito flagrante aos direitos do preso. Não é surpresa — é o modus operandi da nossa polícia”. De fato, não é surpresa, mas o motivo da falta de surpresa não é enunciado. Miguel não quer ir além: o que, afinal, não é surpresa? A espetacularização de mais um negro sendo preso? É sempre flagrante nos escritos de Miguel que o racismo é “algo menor”. A falta de surpresa é a do racismo policial, só que admiti-lo colocaria em xeque o argumento subsequente: “o outro fato evidente é que, sim, suas músicas se enquadram como apologia e incitação ao crime. Serviriam de ilustração dos artigos 286 e 287 do Código Penal”.
Uma breve história da música revela, porém, o caráter racial da aplicabilidade da pena em voga nesses artigos penais. Não precisamos ir longe para saber que agrupamentos e expressões culturais vindas de pessoas negras são amplamente condenadas na prática constitucional brasileira, muitas delas denunciadas em bons sambas — quem não lembra do delegado Chico Palha, “sem alma e sem coração”, dos compositores Hélio dos Santos e Nilton Silva?
O Código Penal de 1890 já aplicava uma lei contra a vagabundagem, legada depois pela afamada Lei de Contravenções Penais de 1941, mais conhecida como lei de vadiagem. Ambas permitiam na prática a perseguição policial aos sambistas e a dissolução, na base do cassetete, das rodas de samba. Vistas como lugar de perdição, as rodas eram frequentadas por Pixinguinha — a quem Miguel faz menção como um dado “elitista”.
Do ponto de vista do apuro estético-musical, Pixinguinha e Poze são separados por um abismo histórico: o primeiro vive diante de uma utopia desenvolvimentista que buscava integrar os negros (como subalternizados) ao capitalismo via ideologia da democracia racial; ao passo que o segundo vive numa época em que essa utopia ruiu, restando só o braço armado do Estado na defesa de um capitalismo fim de linha — central à manutenção da relação facção-polícia —, protagonizando o acintoso assassinato de jovens negros e periféricos. Há algo, porém, que os une de maneira fundamental, a cor da pele. Isso não mudou. Miguel, porém, não está tão interessado nessas mediações históricas complexas, apesar de enunciar sua “preocupação” com o tema da apologia. “Podemos discutir se ‘apologia’ deveria estar tipificada como crime no Código Penal”, pondera, e logo arremata: [mas] “espero — que todo mundo concorde que incentivar crianças a trocar os livros escolares por uma AK-47 é uma monstruosidade”.
E, assim, na sua defesa moral tampouco faz questão de refletir sobre o contexto social e político que organiza a condição de possibilidade de um MC como Poze. No seu discurso, as facções são quase objetos etéreos: o domínio de um território é quase uma contingência não delimitada pela história nem sequer pela forte relação simbiótica que as facções têm com o Estado. E, portanto, é como se a reprodução cultural pudesse escapar do seu lugar de produção. Sempre patente no discurso politicista de certo marxismo: tudo é uma questão de agência.
Sem se preocupar com a realidade das favelas, ele também desconhece a realidade das prisões, como declara candidamente neste excerto: “E a ligação do artista com o CV é notória; ele mesmo a declarou ao entrar na cadeia.” Qualquer um que se detenha sobre o modo de operacionalização das prisões e penitenciárias do Brasil, ou à realidade de ser morador de um morro, sabe que o pressuposto de sobrevivência numa cadeia é justamente declarar sua pertença. Usar isso como prova criminal das ligações de Poze, criado num morro dominado pelo CV, é justamente a operação que a polícia efetiva. Seria Miguel um policial?
“Se”, como o próprio Luis Miguel afirma, “as facções exercem uma forma de tirania sobre as favelas — ‘comunidades’, para usar o eufemismo bem-pensante — que controlam”, o que impede o professor de ver o funk como um sintoma que desnuda esse processo? Por que diminuir o fato de que a criminalização do funk é mais uma herança dessa prática estatal-administrativa claramente seletiva na aplicabilidade da pena?
Miguel, contudo, chama de “discurso fácil da esquerda” os estudos sérios que observam a prática persecutória do Estado brasileiro às expressões culturais negras das quais o funk é o último remanescente. Uma perseguição iniciada nos anos 1970, em plena ditadura, e que se aprofundou mais e mais. Aliás, como comprova estudo recente, o maior detonador das prisões de MC’s não são as letras, mas o artigo 35 da Lei nº 11.343: “associação para praticar, de forma reiterada ou não, qualquer dos crimes previstos nos artigos 33 (tráfico de drogas) e 34 (atos preparatórios para o tráfico)”.1 Mais uma vez é a — para sempre perdida — guerra às drogas o real motivo das prisões.
Mas tal associação exige um vínculo estável e permanente entre duas ou mais pessoas, o que na prática leva às questões: Quais crimes são esses que juntam duas ou mais pessoas? O que significa “atos preparatórios para o tráfico”? A resposta concreta a essas perguntas foi dada dias depois da prisão de Poze.
Um baile de festa junina ocorrido no morro de Santo Amaro foi simplesmente invadido pelo Bope, que deixou cinco feridos e assassinou Herus Guimarães Mendes, de apenas 24 anos. Uma festa — repleta de crianças, mulheres e idosos — que sempre será vista pela polícia, e por seus defensores, como criminosa por ser um “possível ato preparatório para o tráfico”. Mas para isso Miguel fecha os olhos, assim como fechou os olhos para a tomada de posição desses mesmos MC’s após os acontecimentos.
“Do lado dos identitaristas”, dirá Miguel, “Poze do Rodo foi reduzido à cor da sua pele: era negro, logo sua prisão era injusta. Sem ignorar o peso do racismo na forma como ocorreu a ação da polícia, convém não deixar de lado outros atributos do cantor” (atributos que Miguel faz questão de enfatizar a fim de deixar a questão racial como mero acidente de percurso), “como dinheiro farto e acesso a advogados de primeiro time, que logo o soltaram e que provavelmente vão garantir sua liberdade por muito tempo, mesmo que crimes mais graves sejam provados”.
O racismo, que Miguel vê como mero acidente de percurso na prisão de Poze — ignorando a celebração de policiais que adoraram tirá-lo da cama na frente dos filhos, aliás, como se isso ocorresse com os filhos da elite — é minimizado, para não dizer relativizado. Como sempre: algo menor. Até parece que vivemos num país em que a polícia está sempre prendendo gente com grana e branca.
Fanon falava sobre uma violência atmosférica em sociedades legatárias do colonialismo. De maneira sintética, trata-se da normalização da violência dirigida contra pessoas marcadas pela raça na mesma medida em que se enxergam essas mesmas pessoas como radicalmente violentas e perigosas. Infelizmente, a relativização de Miguel se marca justamente por esse olhar. O racismo é só um detalhe… E, assim, incapaz de fazer a melhor pergunta, por não levar a questão racial como algo determinante no sistema punitivo e prisional brasileiro, Miguel não leva em consideração também que, mesmo tendo dinheiro, bons advogados e ampla repercussão midiática, Poze foi arrastado descalço ao camburão. E se ele foi assim conduzido, mesmo tendo recursos, o que a polícia faz com quem não dinehiro, mas tem a mesma cor?
Não bastasse, o encaminhamento do discurso resvala numa sentença. Após reclamar da troca de mensagens entre Érica Hilton e Oruam, de mais uma vez criticar o punitivismo progressista — algo efetivamente reativo —, ele diz que a esquerda “aparece em público como amiga de bandidos”. Ora, se todo processo legal é importante, como defende o legalista-marxista, quais os crimes de Oruam além da tatuagem de Elias Maluco (algo enfatizado por Miguel para incriminá-lo), que era ninguém menos que seu tio?
Destilando todo o seu veneno — talvez o leitor possa dar nome à poção desse veneno —, após todas as acusações feitas à esquerda, Miguel traz o caso Leo Lins. (O interessante nesses textos mais ocasionais, mais íntimos ou confessionais, é que deixam entrever o inconsciente do autor.) “O caso dele [Leo Lins] é, a meu ver, um pouco mais complexo”. É interessante como o caso de Poze é mais superficial, tranquilo, quase uma normalidade já que, bem… vocês sabem… Leo Lins não. Esse caso merece atenção.
Num tom paternalista, ele ruma à “complexidade” do caso: “o que parecia incomodar muita gente progressista, até onde vi, era a insensibilidade. É um traço do mundo em que vivemos, um traço bastante problemático — a ideia de que ser sensível e empático é a obrigação nº 1 de cada um de nós.”
O argumento é inválido, ser sensível ou não não estava em questão. Vamos nos debruçar em apenas três “piadas” de Leo Lins — antes, porém, lembro que Miguel ocultou a “piada” sobre pedofilia feita pelo “comediante”, enquanto detalhou as características de Oruam. Mera coincidência? Decida, leitor! Enquanto isso vamos às “piadas”:
“O cara deixou assim: ‘Sou gordo! Adoro comer e não gosto de fazer exercício. Como vou emagrecer?’ Pegando Aids! Você não adora comer de tudo? Sai comendo gay sem camisinha!”
“Tem ser humano que não é 100% humano. O nordestino do avião? 72%.”
“O rico tenta ter filho e não consegue, vai para o médico, faz inseminação artificial, aí vai para África buscar um, lá tem plantação. Lá você escolhe no pé, ‘esse tá bem escurinho, vai dar like no Insta.”2
Para Miguel, as “piadas” de Leo Lins prefiguram figuras de linguagem da hipérbole, sarcasmo e recurso ao absurdo. Lembrando que o “humorista” não foi conduzido à prisão nem foi acordado por policiais, mas recebeu sua sentença no conforto de casa e a decisão da juíza foi baseada nas Leis nº 7.716/1989 (preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional) e nº 13.146/2015 (discriminação contra pessoas com deficiência), agravados pelo contexto de “atividades culturais destinadas ao público” — o que, segundo critérios legalistas utilizados pelo próprio autor, deveriam configurar crime.
Ou talvez, esse crime não seja visto por ele como “tão crime assim”, senão algo inventado pelo “politicamente correto” dos identitários que tanto o perseguem. Eis, a armadilha em que recai o próprio Miguel, sem levar em consideração a questão racial envolvida e a violência institucional dirigida contra os racializados, passa a fazer coro com a seletividade punitiva própria ao sistema judiciário brasileiro.
De minha parte, acredito firmemente que todo processo de judicialização ocorre como sintoma de uma derrota política. A prisão não é uma saída para “humoristas” como Leo Lins, o ostracismo e o escracho popular seriam a melhor pena. Mas isso dá muito mais trabalho, pois necessita de uma politização real da vida comum. Algo que nem grande parte da esquerda, nem o paladino moralista Miguel querem bancar.
Seja como for, a sentença foi quase um presente dado a um humorista rumando ao ostracismo e que, de repente, se vê novamente alçado aos trending topics, realimentando os imbecis que riem de suas piadas. Mais do que humorista, Leo Lins é agora um mártir, e rapidamente a notícia foi instrumentalizada pela indústria das fakes requentando a velha e insípida polarização das redes. A receita de sucesso típica da extrema direita que já tem lugar cativo na câmara, e que se tornou fonte de renda para centenas de jovens.
O epílogo do texto é ainda mais sintomático: “Mas daí eu vi as piadas de Leo Lins sobre pedofilia”, comenta Miguel, “e, nelas, um limite foi ultrapassado com absoluta clareza. Não vou reproduzi-las, obviamente, mas o que o comediante faz é um chamamento à violência sexual contra crianças.” Após essa constatação, meio óbvia demais, Miguel segue relativizando e trazendo à baila Rafinha Bastos para, no fim, arrematar que “as piadas de Leo Lins não apenas concedem legitimidade ao pedófilo como também sabotam os esforços para fazer com que as crianças sejam capazes de identificar e denunciar quando sofrem abuso sexual. É caso de prisão? Não creio”.
Eu poderia continuar este texto falando do grau de seletividade punitiva exercida por Miguel, poderia falar sobre sua desejosa miopia ante questões raciais e da gravidade de relativizar tanto aquilo que foi suporte de seus argumentos: a legalidade burguesa. Mas confio na inteligência do leitor para completar a mensagem deste breve artigo.
Notas
- CYMROT, Danilo. A criminalização do funk sob a perspectiva da teoria crítica. Orientador: Professor Sérgio Salomão Shecaira. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2011. ↩︎
- As transcrições podem ser lidas aqui. ↩︎
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Douglas Rodrigues Barros é psicanalista e doutor em ética e filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professor filiado ao Laboratório de experiências coloniais comparadas, ligado ao Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor na pós-graduação em filosofia da Unifai. Investiga principalmente a filosofia alemã conjuntamente com o pensamento diaspórico de matriz africana e suas principais contribuições teóricas no campo da arte e da política. Escritor com três romances publicados, também é autor dos livros Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra) e Hegel e o sentido do político (lavrapalavra).
O que é identitarismo?, de Douglas Barros
Na última década, um termo tem se proliferado de maneira espantosa no discurso político. Moralmente carregado e lançado a torto e a direito em disputas de internet, mesas de bar, espaços acadêmicos e palanques políticos. Mas, afinal, o que é identitarismo? Na interpretação original do psicanalista Douglas Barros, o termo nomeia sobretudo uma forma de gestão da vida social contemporânea que engole esquerda e direita. Com um olhar da periferia do capitalismo sobre a colonização, Douglas revisita, pelo prisma da identidade, o surgimento e desmonte do sujeito, do Estado e do capitalismo modernos para jogar luz sobre os impasses da política contemporânea.
NÃO PERCA OS PRÓXIMOS EVENTOS!

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