Agonia e estase
Frontispício da primeira edição do Leviatã (1651), de Thomas Hobbes, criada por Abraham Bosse a partir das instruções do autor. Imagem: Biblioteca Britânica / Wikimedia Commons
Por João Lanari Bo
“A tradição democrática repousa sobre o princípio de que a política é possível somente se houver em qualquer parte um conflito que não pode ser mediado e governado. Não se trata de nenhum modo de um modelo de desordem ou de guerra civil permanente, ao contrário: estão em questão os próprios princípios que tornam possível a democracia.”
— Giorgio Agamben em Stasis: a guerra civil como paradigma político
O autor dessa proposição chama-se Giorgio Agamben, um eclético e persuasivo filósofo-poeta que sabe muito bem como cutucar com vara longa as “matrizes secretas” da sociedade contemporânea. Nossa época, diz ele, está marcada pela intervenção disseminada do poder na vida humana: se o exercício político era um “modo de vida” na “pólis” grega, o que temos hoje é um “estatuto jurídico exclusivamente passivo, no qual ação e inação, público e privado, são obscurecidos e tornam-se indistinguíveis”.
O termo stasis (estase) tem origem na palavra grega “stásis”, que significa “parada”, “estado” ou “condição”. É derivada do verbo grego “histánai”, que significa “fazer ficar de pé” ou “estabelecer”. O curto e denso livro de Agamben que a Boitempo coloca no mercado tem como título Stasis: a guerra civil como paradigma político. Composto de dois seminários realizados na Universidade de Princeton, em 2001, acrescidos pelo autor do texto “Notas sobre a guerra, o jogo e o inimigo”, de 2018, a obra pretende calibrar a variante moderna do conceito em uma era declinante de lógicas multilaterais de governo, a contrapelo de ambições nacionalistas idealizadas sob a ótica populista.
De 2001 para cá, o mundo girou e a filosofia rodou: a explosão das redes sociais — ou seja, a polivalência e a ausência de centralidades organizadoras dessa nova geração de serviços baseados nas tecnologias digitais —impõe uma reciclagem de alguns parâmetros da velha e batida ciência política, já que as redes se tornaram, queiramos ou não, cúmplices e mesmo protagonistas desse novo mundo. Um novo mundo que se organiza e reorganiza a uma velocidade inimaginável, derrubando de vez a centralidade do sujeito do conhecimento como (suposto) ordenador do saber (os neocapitalistas atilados sabem disso).
Somos habituados à estabilidade dos centros analógicos da mídia tradicional e a estruturas institucionais de poder, mas — e aí surge a vertigem — o chamado “espaço real”, aquele onde circulamos, experimentamos nossos sentidos e adquirimos a “certeza sensível”, caminha a passos céleres para se tornar um mero subconjunto do que entendemos hoje por “espaço virtual”, como querem as Big Techs. Claro, tudo isso pode soar exagerado, despropositado… qual seria a alternativa? Agamben seguramente é dos poucos que insiste em tecer hipóteses — etimológica e literalmente, o “ato de colocar algo embaixo de” — a fim de dar um curto-circuito nesses, digamos, discursos.
“Stasis” grega, o começo
Agamben foi buscar os textos da historiadora Nicole Loraux para mostrar que em Atenas a “stasis”, a guerra civil, funcionava como uma espécie de exterioridade, cuja possibilidade fundamentava e mantinha a democracia. Guerra civil, ou sua possibilidade, seria a tensão equilibrada, o equilíbrio delicado entre os paradigmas administrativo e político pelos quais a família e a cidade eram administradas e governadas. Para Loraux:
“A democracia ateniense, ao invés de tentar (eliminar) a ‘stasis’, soube incorporá-la de forma a permitir a participação política e a resolução de conflitos, ainda que de maneira tensa e complexa… longe de ser um obstáculo à democracia, era um motor de sua dinâmica, impulsionando o debate político e a participação cidadã…. um aspecto intrínseco e até mesmo necessário da vida política ateniense.”
A “stasis”, assevera Agamben em seu livro, “constituía um limiar de indiferença entre o ‘oikos’ e a ‘pólis’, entre a realeza de sangue e a cidadania”. Na Grécia antiga, prossegue o autor:
“A guerra civil funciona como um limiar no qual as relações familiares são repolitizadas: quando, em vez disso, é a tensão em direção à pólis que prevalece e o vínculo familiar parece enfraquecer, então a ‘stasis’ intervém para recodificar a relação familiar em termos políticos.”
No início do milênio, quando proferiu os seminários ora publicados, o filósofo concluía que “o terrorismo mundial é a forma que a guerra civil assume quando a vida como tal se torna aquilo que está em jogo na política”. Para ele, a comunidade por vir, a Europa — trata-se de um europeu, sublinhe-se — é exposta à morte, ao terrorismo como “guerra civil”, no momento em que se constitui como espaço de gestão econômica, a Comunidade dos Estados Europeus.
Hobbes e o frontispício de Leviatã
Na segunda parte do livro, Agamben reaparece turbinado — no melhor da sua forma, mergulha em uma leitura minuciosa da capa da primeira edição do Leviatã, de 1651, criada por Abraham Bosse seguindo as instruções de Hobbes. A imagem do soberano, elemento principal, composta por várias figuras humanas sem cabeça, funciona, para Agamben, como dispositivo óptico que simboliza a união da multiplicidade em uma única pessoa. Comparando a capa “oficial” com a cópia em pergaminho depositada na British Library, além de outros estudos (entre eles o de Reinhardt Brandt, que desenhou o corpo invisível do gigante seguindo as proporções do cânone vitruviano), o filósofo romano engendra uma notável arqueologia da imagem, com sua maestria habitual.
Mas não para por aí: a imagem seria a contrapartida profana da imagem do Cristo da Igreja. A inspiração de Hobbes foi a concepção paulina contida nas Epístolas aos Fiéis: “O marido é a cabeça da esposa, como Cristo é a cabeça da assembleia e salvador do corpo”. Por essa razão, os corpos que habitam o corpo do soberano não estão presentes na cabeça. Entra no debate Carl Schmitt, cuja leitura hobbesiana — a máquina governamental moderna impede a vinda do Reino de Deus — é contestada por Agamben:
“Contra a doutrina predominante, que tendia a interpretar o conceito do Novo Testamento da Basileia Theou (Reino de Deus) numa direção metafórica, Hobbes afirma energicamente que tanto no Antigo como no Novo Testamento o Reino de Deus significa um Reino político real, que Cristo restaurará no fim dos tempos.”
Os enigmas do frontispício, ou seja, do Leviatã, podem, então, ser resolvidos apenas dentro dessa perspectiva apocalíptica. A conclusão: “a política contemporânea é fundada numa secularização da escatologia”. Ou ainda:
“Não é a confusão do escatológico com o político que define a política de Hobbes, mas uma relação singular entre os poderes autônomos… que estão escatologicamente ligados, no sentido em que o primeiro terá necessariamente de desaparecer quando o segundo for realizado.”
É conhecida a propensão de Agamben ao messianismo de São Paulo. Ao fim e ao cabo, o que se espera é a destruição (ou destituição) do Estado moderno e suas prerrogativas soberanas (ou seja, biopolíticas).
Jogo jogado
Giorgio Agamben prossegue sua navegação digital em torno da “stasis” convocando, no terceiro texto do volume, agregado a posteriori, o polêmico mas incontornável Carl Schmitt. E o faz lançando mão do insuspeito Johan Huizinga, autor de Homo Ludens (1938), a bíblia dos teóricos do videogame, onde se discute a centralidade do jogo na história da cultura ocidental — e também de Leo Strauss, implacável comentarista de Schmitt. Logo no início lemos:
“A definição de Schmitt do político por meio da oposição inimigo/amigo (cuja proeminência, como Schmitt deixa entender, cabe ao inimigo) foi tão discutida e parafraseada, que acabou por se transformar progressivamente… numa ‘banalidade superior’, que é aceita ou rejeitada sem que a coerência de suas implicações lógicas seja submetida a uma análise rigorosa.”
Schmitt atribui o “direito da guerra” do Estado como meio de manter a unidade política e, portanto, abre “a possibilidade de exigir dos membros do próprio povo a disposição de morrer e matar”. Um mundo pacificado, desprovido da distinção amigo/inimigo, seria um mundo sem política ou sem Estado. A guerra é o pressuposto da inimizade e a inimizade é o pressuposto da guerra, logo, ocorre uma circularidade da relação entre as duas noções. Agamben conclui: “Guerra e inimizade permanecem entrecruzadas de forma tão estreita que não é possível separá-las de maneira nenhuma. A doutrina schmittiana da política é, na realidade e na mesma medida, uma doutrina da guerra.”
Leo Strauss intervém para uma glosa pertinente: “a razão última da definição schmittiana do político está na vontade de negar, com todos os meios, qualquer concepção da sociedade humana que se funde na exclusão da guerra”. Segundo Strauss:
“O dia em que mesmo a simples eventualidade de uma distinção entre amigo/inimigo venha a cair, então existiriam apenas uma concepção do mundo, uma cultura, uma civilização, uma economia, uma moral, um direito, uma arte, um divertimento etc. não contaminados pela política, mas não existiriam mais nem política nem Estado.”
“Divertimento”: Aparece aí a contraposição entre o sério e o jocoso como critério do político. Huizinga, por seu turno, se interessa pelo significado e a importância do termo grego “agon”, que na Grécia Antiga significava competição, disputa, luta, conflito ou debate, e era usado para descrever festivais e jogos onde os participantes competiam por prêmios. Para Agamben:
“A conclusão que Huizinga sugere é que a guerra, em sua forma originária, pode ser considerada como um aspecto essencial da função agonística – e, portanto, jocosa – de uma determinada sociedade. ‘Combater, como função cultural, sempre pressupõe regras limitativas, e exige, ao menos em certa medida, o reconhecimento de seu caráter de jogo.’”
E arremata:
“As guerras, ao menos em seu núcleo mais antigo, pertencem à esfera do jogo e, porquanto elas tenham evoluído historicamente para outras direções, é no interior desse paradigma que é preciso mais uma vez situá-las, caso se queira compreender sua função originária.”
História e anacronia
Um dos prazeres da leitura dos textos de Agamben é sua versatilidade, até mesmo sua instabilidade em lidar com os múltiplos fragmentos da história, maiúscula ou minúscula. Sujeito a escorregões, como na polêmica que desencadeou com suas posições sobre a Covid-19, mas sempre disposto a privilegiar o papel do contemporâneo — aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo.
Nicole Loraux incluiu em A tragédia de Atenas: a política entre as trevas e a utopia, livro publicado postumamente, um ensaio chamado “Elogio ao anacronismo em história”. Instigante e transparente, como de hábito, propõe uma passagem de tempo muito precisa: partir do presente com seus afetos e questões atuais, abrir um laboratório historicista distante e retornar com novos pontos de vista graças ao conhecimento histórico adquirido.
Mal resumindo, naturalmente, é por onde vai Agamben. Para uma conferência em fluxo contínuo desse anacronismo controlado, recomenda-se seu elegante (e polêmico) blog.
***
João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FACUNB) desde os anos 1980. Diplomata, residiu em Tóquio por três anos e publicou, após seu retorno, o livro Cinema japonês (2016). Colabora em periódicos como Correio Braziliense e a revista Devires. É realizador e produtor de mais de 15 filmes.
PARA SE APROFUNDAR NO TEMA

Stasis: a guerra civil como paradigma político, de Giorgio Agamben
Stasis é o nome da guerra civil na Grécia antiga – um conceito tão perturbador que a filosofia política posterior preferiu deixá-lo à margem, sem jamais transformá-lo em objeto de uma doutrina consistente nem mesmo entre os teóricos da revolução. Neste ensaio instigante, livro II, 2 da tetralogia Homo sacer, Giorgio Agamben propõe os primeiros passos rumo a uma “stasiologia”, uma teoria da guerra civil, e sustenta que é precisamente ela, a guerra civil, a verdadeira linha de fronteira da politização no Ocidente. Um dispositivo paradoxal que, ao longo da história, ora despolitizou a cidadania, ora mobilizou o impolítico – e que ressurge sob a forma do terror em escala planetária.
“O fato de faltar, atualmente, uma doutrina da guerra civil é geralmente admitido, sem que essa lacuna pareça preocupar demasiadamente juristas e politólogos. Roman Schnur, que já nos anos 1980 formulava esse diagnóstico, acrescentava, contudo, que a desatenção em relação à guerra civil caminhava no mesmo ritmo que o aumento da guerra civil mundial. Depois de trinta anos, a observação não perdeu nada da sua atualidade. Enquanto hoje parece ter diminuído a própria possibilidade de distinguir guerra entre Estados e guerra intestina, os estudiosos competentes continuam evitando com cuidado qualquer tipo de aceno a uma teoria da guerra civil.”
— Giorgio Agamben em Stasis: a guerra civil como paradigma político
NÃO PERCA NA TV BOITEMPO
Assista na TV Boitempo a íntegra do curso “Introdução a Giorgio Agamben“
Aula #1 | O Estado de exceção, com Edson Teles e mediação de Ana Carolina Martins.
Aula #2 | Homo sacer, com Vinícius Nicastro Honesko e mediação de Caio Paz.
Lançamento de O que é a filosofia?, com Carla Rodrigues, Isabela Pinho, Raul Antelo e mediação de Juliana Monteiro.
Giorgio Agamben e a linguagem, com Patricia Peterle.
êxtase
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Olá, Herculano!
Leia o texto e descobrirá que a palavra (de origem grega) é esta mesma: “estase”. Não confundir com “êxtase” ;)
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estático
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