Guia de leitura | Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã | ADC#39

Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã
Friedrich Engels

Guia de leitura / Armas da crítica #39

.

.

Quem foi Friedrich Engels?

Friedrich Engels nasceu em 28 de novembro de 1820, em Barmen, na atual Alemanha. Filho de um industrial do ramo têxtil, deixou os estudos para trabalhar na fábrica da família em Manchester, na Inglaterra, experiência fundamental para sua trajetória política e intelectual.

Conhecedor do capitalismo por dentro, Engels tornou-se um crítico da divisão de classes, da religião e da família. Revolucionário e teórico do socialismo, entre suas obras estão: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Anti-Dühring e Dialética da natureza.

Na década de 1840, Engels conheceu o amigo e parceiro intelectual Karl Marx, com quem fundou o marxismo e escreveu o Manifesto comunista, um dos textos políticos mais influentes da humanidade, A ideologia alemã, A sagrada família e tantos outros. Morreu em 1895 em razão de um câncer.

“Os textos publicados em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã não são colaterais à ‘verdadeira’ obra marxista, mas parte integral e inseparável dela.”

ARLENE CLEMESHA

Engels e o canteiro de obras da teoria marxista

O que têm em comum os textos tardios de Friedrich Engels, “Sobre a história do cristianismo primitivo” e “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, e as “Teses sobre Feuerbach”, escritas por Karl Marx em meados da década de 1840? Redigidos ao longo de meio século, eles testemunham tanto a unidade de pensamento dos dois intelectuais, quanto a sua evolução e transformações.

Os textos de Marx e Engels sobre religião evidenciam a formação do materialismo histórico. São os pressupostos e a base de suas investigações sobre economia e sociedade, constituindo, ao mesmo tempo, uma intervenção intelectual e política direta na realidade contemporânea a eles.

Trata-se do canteiro de obras da teoria marxista, que concluiria, pouco mais de duas décadas depois, com a “crítica da religião, da filosofia e da política” ou a crítica da economia política, isto é, com a magnum opus de Marx, O capital.

Arlene Clemesha

Professora de história árabe contemporânea da Universidade de São Paulo (DLO-USP). Autora, entre outros livros, de Marxismo e judaísmo: história de uma relação difícil (Boitempo).

“Engels faz uma análise materialista da história da filosofia, ou, em outras palavras, um acerto de contas do materialismo histórico com a filosofia que vem após a morte de Hegel, isto é, um balanço de toda a filosofia alemã de sua época e das consequências do desenvolvimento capitalista na conformação do pensamento filosófico do país após o fracasso das Revoluções de 1848.”

EDUARDO CHAGAS

Hegel, Feuerbach e a religião

Os escritos de Engels tratam da necessidade da superação do hegelianismo, da prestação de contas com o pensamento de Feuerbach – enfatizando sua relevância para o materialismo, para a formação do materialismo histórico e, por conseguinte, o papel desempenhado por ele na fundação do próprio marxismo –, bem como da luta contra a religião cristã oficial institucionalizada – que prega a felicidade no além, conformando os homens para suportarem os sofrimentos deste mundo –, sem deixar, no entanto, de tomar a religião também como forma de reação à dominação, a exemplo do cristianismo primitivo – voltado para o bem comum das primeiras comunidades cristãs na vida terrena, no aquém, e não no além.

Eduardo Chagas

Professor efetivo do curso de filosofia e do
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC).

“Tanto tempo depois de sua publicação, o que ainda transparece nas páginas do Feuerbach é, finalmente, um aspecto da tradição marxista que Engels, nas palavras de Lukács, soube plenamente incorporar: o ‘princípio revolucionário da vida‘”.

VICTOR STRAZZERI

A força retórica de Engels

Embora curto, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, de Friedrich Engels, é um texto de importância e impacto superlativos. Com exceção do Manifesto comunista, o Feuerbach de Engels, publicado em 1886, é provavelmente a fonte do maior número de formulações com as quais a concepção materialista da história passou a ser identificada (e combatida) na sua vasta recepção: da conhecida metáfora de que a dialética hegeliana teria sido posta “de cabeça para baixo” pelos jovens Marx e Engels à afirmação – que fecha o pequeno livro – de que o “movimento dos trabalhadores alemães” seria “o herdeiro da filosofia clássica alemã”.

O mérito do Feuerbach de Engels consiste, portanto, menos na originalidade do que na força retórica e sugestiva que deu a essas e outras formulações, até o ponto de convertê-las em lugares-comuns do debate sobre o pensamento marxista

Victor Strazzeri

Doutor em ciência política pela Universidade Livre de Berlim e coordenador de projeto no Instituto de Teoria Crítica de Berlim (InkriT). Pós-doutorando em ciências sociais na Unifesp.

Os humanos fazem sua história, como quer que ela resulte, tendo em vista que cada qual busca os próprios fins conscientemente desejados, e a resultante dessas muitas vontades que atuam em diversas direções e suas múltiplas incidências no mundo exterior é precisamente a história.”

FRIEDRICH ENGELS

[LUDWIG FEUERBACH E O FIM DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ, p. 74]

.

A relação entre pensar e ser

A questão da relação entre pensar e ser, entre espírito e natureza, a questão suprema de toda filosofia tem sua raiz, da mesma maneira que toda religião, nas representações estreitas e inscientes da condição de selvageria. Porém ela só pôde ser proposta com toda a precisão, ela só se revestiu de toda a sua importância, quando a humanidade europeia despertou da hibernação da Idade Média cristã.

A questão da posição do pensamento em relação ao ser, que, aliás, também desempenhou um papel importante na escolástica da Idade Média, a pergunta: o que é o primordial, o espírito ou a natureza? – essa pergunta culminou, em confronto com a Igreja, nesta: foi Deus que criou o mundo, ou o mundo existe desde a eternidade?

[LUDWIG FEUERBACH E O FIM DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ, p. 46]

O passo que Feuerbach não deu tinha de ser dado; o culto ao ser humano abstrato, que constituiu o núcleo da nova religião de Feuerbach, tinha de ser substituído pela ciência do ser humano real e seu desenvolvimento histórico. Esse desenvolvimento da posição de Feuerbach para além de Feuerbach foi inaugurado em 1845 por Marx em A sagrada família.”

FRIEDRICH ENGELS

[LUDWIG FEUERBACH E O FIM DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ, p. 66]

.

O infrutífero impulso de Feuerbach

Como foi possível, contudo, que o potente impulso dado por Feuerbach resultasse tão infrutífero para ele mesmo? Simplesmente porque Feuerbach não conseguiu encontrar o caminho que leva do reino das abstrações, mortalmente odiado por ele mesmo, até a realidade da vida. Ele se agarra com força à natureza e ao ser humano; mas natureza e ser humano continuam sendo para ele meras palavras.

Ele não nos sabe dizer nada determinado nem sobre a natureza real nem sobre o ser humano real. Porém, só se consegue chegar do ser humano abstrato de Feuerbach até aos seres humanos da vida real quando se observa a ação destes na história. Mas Feuerbach resiste a isso e, em consequência, o ano de 1848, que ele não entendeu, significa para ele a ruptura definitiva com o mundo real, a retirada para a solidão. A culpa disso, uma vez mais, é principalmente das condições alemãs que permitiram que ele se degradasse de maneira miserável.

[LUDWIG FEUERBACH E O FIM DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ, p. 65]

A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que induzem a teoria ao misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática.

KARL MARX

[LUDWIG FEUERBACH E O FIM DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ, p. 91]

.

Sobre a história do cristianismo primitivo

A história do cristianismo primitivo apresenta notáveis pontos de contato com o moderno movimento dos trabalhadores. A exemplo deste, o cristianismo foi originalmente um movimento de oprimidos: ele entrou em cena primeiramente como religião de escravos e libertos, de pobres e sem direitos, de povos subjugados e dispersos por Roma. Tanto o cristianismo quanto o socialismo dos trabalhadores pregam uma redenção iminente da servidão e da miséria; o cristianismo situa a redenção em uma vida transcendente após a morte, no céu, o socialismo a situa neste mundo, numa sociedade transformada.

Ambos foram perseguidos e acossados, seus adeptos banidos, submetidos a leis de exceção, uns como inimigos do gênero humano, os outros como inimigos do império, inimigos da religião, da família, da ordem social. E, apesar de todas as perseguições e até diretamente fomentados por elas, ambos avançaram vitoriosa e irrefreavelmente. Trezentos anos após seu surgimento, o cristianismo foi reconhecido como religião oficial do Império Romano mundial e, em menos de sessenta anos, o socialismo conquistou uma posição que lhe garante a vitória absoluta.

[LUDWIG FEUERBACH E O FIM DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ, p. 91]

“Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras;
porém, o que importa é transformá-lo.

KARL MARX

[LUDWIG FEUERBACH E O FIM DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ, p. 91]

.

Teses sobre Feuerbach

O principal defeito de todo o materialismo existente até agora – o de Feuerbach incluído – é que o objeto [Gegenstand], a realidade, o sensível, só é apreendido sob a forma do objeto [Objekt] ou da contemplação; mas não como atividade humana sensível, como prática, não subjetivamente.

Daí decorreu que o lado ativo, em oposição ao materialismo, foi desenvolvido pelo idealismo – mas apenas de modo abstrato, pois naturalmente o idealismo não conhece a atividade real, sensível, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis [sinnliche Objekte] efetivamente diferenciados dos objetos do pensamento; mas ele não apreende a própria atividade humana como atividade objetiva [gegenständliche Tätigkeit]. Razão pela qual ele enxerga, na Essência do cristianismo, apenas o comportamento teórico como o autenticamente humano, enquanto a prática é apreendida e fixada apenas em sua forma de manifestação judaica-suja. Ele não entende, por isso, o significado da atividade “revolucionária”, “prático-crítica”.

[LUDWIG FEUERBACH E O FIM DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ, p. 125]

Leituras complementares

Baixe os conteúdos complementares do mês em PDF!

Este mês trazemos um capítulo de A sagrada família, de Karl Marx e Friedrich Engels, um trecho da biografia do autor do mês escrita por Gustav Mayer e um artigo de Virgínia Fontes do livro Curso livre Engels: vida e obra.

Clique nos botões vermelhos abaixo para fazer o download!

Karl Marx e Friedrich Engels

A correspondência da Crítica crítica


Gustav Mayer

O império alemão e a unificação da social-democracia alemã


Virgínia Fontes

A criação do marxismo: polêmicas sobre Marx e Engels

Vídeos

Este mês trazemos o lançamento antecipado do livro com Eduardo Chagas, Victor Stazzeri e Agnus Lauriano, além de dois vídeos da série Coleção Marx-Engels nos quais são abordadas as obras A origem da família, da propriedade privada e do Estado e A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.

Para aprofundar…

Compilação de textos, podcasts e vídeos que dialogam com a obra do mês.

Friedrich Engels: uma biografia, de Gustav Mayer

Curso Livre Engels: vida e obra, de Alysson Leandro Mascaro, José Paulo Netto, Ricardo Antunes,
Virgínia Fontes e
Marília Moschkovich

A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Friedrich Engels

A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels

Dialética da natureza, de Friedrich Engels

A sagrada família, de Friedrich Engels e Karl Marx

Anti-Dühring, de Friedrich Engels

Sobre a questão da moradia, de Friedrich Engels

Esboço para uma crítica da economia política e outros textos de juventude, de Friedrich Engels

Manifesto comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels

A ideologia alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels

O socialismo jurídico, de Friedrich Engels e Karl Kautsky

A guerra civil dos Estados Unidos, de Karl Marx e Friedrich Engels


Rádio Boitempo: Extra #1: Manifesto comunista na voz de José Paulo Netto, jun. 2022.

Rádio Boitempo: Coleção Marx-Engels #5: A origem da família, da propriedade privada e do Estado, com Débora Tavares e Caio Rubini, dez. 2023.

Rádio Boitempo: Coleção Marx-Engels #6: A guerra civil dos EUA, com Agnus Lauriano, nov. 2023.

Rádio Boitempo: CB #07 – A crítica da economia política em Marx, com Jorge Grespan, abril 2019. 

Revolushow: Curso Livre Marx & Engels 05 – A Criação do Marxismo, com Virgínia Fontes, fev. 2021.

Revolushow: Curso Livre Marx & Engels 01 – O Pensamento de Engels, com José Paulo Netto, jan. 2021.

Revolushow: Curso Livre Marx & Engels 04 – Crítica da Família e Estudos Antropológicos de Engels, com Marília Moscovitch, fev.2021.

A interpretação de Engels de O capital, com Janaína de Faria, TV Boitempo.

Engels modificou O capital?, com Lincoln Secco, TV Boitempo.

Debate – 200 anos de Engels, com Maria Lygia Quartim de Moraes, Sabrina Fernandes e Osvaldo Coggiola, TV Boitempo.

200 anos de Friedrich Engels, com José Paulo Netto, Tutaméia TV, 2020.

Engels e os estudos feministas, com Maria Lygia Quartim de Moraes, TV Boitempo, 2019.

Feminismo, família, propriedade privada e Estado, com Flávia Biroli, Manuela D’Ávila e Maria Ribeiro, TV Boitempo, 2019.

Marx/Engels e Lênin diante da revolução, com Tariq Ali,TV Boitempo, 2018.

Os manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels, com Michael Heinrich, TV Boitempo, 2018.

Engels como sociólogo da religião, com Michael Löwy, TV Boitempo, 2015.

A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, com Ricardo Antunes, TV Boitempo, 2013.

Engels e o canteiro de obras da teoria marxista“, por Arlene Clemesha, Blog da Boitempo, jan. 2024.

Friedrich Engels: independente, original e vanguardista“, por Felipe Cotrim, Blog da Boitempo, dez. 2021.

Friedrich Engels: uma ode à beleza e à práxis revolucionária”, por Roberta Traspadini, Blog da Boitempo, abril 2021.

Ciência e dialética materialista na obra de Engels“, por Laura Luedy, Blog da Boitempo, dez. 2020.

O pioneirismo e a atualidade de Engels“, por Clara Araujo, Blog da Boitempo, abril 2019.

Sobre a questão da moradia, de Friedrich Engels“, por Guilherme Boulos, Blog da Boitempo, maio 2015.

Marx, Engels e a Rússia“, por Milton Pinheiro, Blog da Boitempo, out. 2013.

O retorno de Engels“, por John Bellamy Foster, Jacobin, nov. 2020.

Friedrich Engels foi mais do que um segundo violino para Karl Marx“, por Marcello Musto, Jacobin, nov. 2020.

Sem Engels não haveria Marxismo“, TraduAgindo, ago. 2020.

A edição de conteúdo deste guia é de Isabella Meucci e as artes são de Victoria Lobo.