Gaza é aqui: um poema de Fadwa Tuqan tra(du)zido para o sertão nordestino
Neste 29 de novembro, em que se celebra o Dia Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino, o Blog da Boitempo apresenta a tradução de um poema de Fadwa Tuqan, um dos maiores nomes da literatura palestina. Nesta versão da poeta pernambucana Adelaide Ivánova, "Hamza", um homem qualquer de Gaza, torna-se "Raimundo", o homem comum do Araripe. Em comum, eles têm "a dignidade com a qual falam e cuidam da sua terra" e a luta travada contra a opressão.
“Paisagem na Palestina”, de Henry Ossawa Tanner (1897-1899)
Imagem: WikiCommons.
Poema de Fadwa Tuqan
Versão e comentário: Adelaide Ivánova
Fadwa Tuqan é conhecida como “A poeta da Palestina” e “A grande dama da literatura palestina”. Ela nasceu em Nablus, em 1917, numa família de escritores. Estudou literatura em Oxford e foi reconhecida, ainda em vida, por sua poesia, tendo recebido diversos prêmios e homenagens. Sobre ela, o poeta libanês Abbas Beydoun escreveu: “Fadwa foi uma poeta original, escrevendo a partir de suas próprias experiências e para seus falecidos irmãos, Ibrahim Tuqan, o poeta palestino mais famoso da época; e para seu segundo irmão, que morreu em um trágico acidente. Fadwa se levantou como uma Electra em luto entre dois irmãos mortos, carregando a dor da família, que podemos facilmente chamar de Palestina. A poesia veio a ela na imagem do destino palestino; em última análise, sua escolha de escrever poesia não foi tão importante quanto sua missão real, que caiu em algum lugar entre a de Joana d’Arc e Al-Khansa” — Al-Khansa foi uma poeta árabe do final do século VI.
“Hamza” é seu mais famoso poema e, ouso dizer, um dos poemas mais lindos produzidos em todos os tempos. Eu o traduzi como “Raimundo”. O texto conta a história de um homem comum na Palestina — um homem ao mesmo tempo como tantos outros, e extraordinário na sua honradez. Já falei mil vezes, tanto na nius como em outros textos, sobre como a resiliência e determinação do povo palestino, e a dignidade com a qual falam e cuidam da sua terra, me lembra demais a resiliência e determinação dos povos da caatinga, tanto no Agreste quanto no Sertão. Raimundo, obviamente, é meu avô, mas também não é. Poderia ser tantos outros Raimundos, nordeste afora, que resistiram aos despejos violentos provocados pelos latifundiários, antigamente chamados de coronéis, e pelos seus cães de guarda, a polícia, antigamente chamados de capangas.
Infelizmente eu não falo árabe, língua do texto original. Para minha tradução/transposição, usei como base as traduções para o inglês de Azfar Hussain e Michael Burch, com Patativa do Assaré, Permínio Asfora e vovô Raimundo na cabeça (sempre).
Raimundo
(Versão de “Hamza”, poema de Fadwa Tuqan, traduzido e “trazido” da Palestina para o sertão do Piauí, por Adelaide Ivánova)
Raimundo era um homem qualquer
Como tantos outros no meu povoado
Ganhava seu pão com trabalho braçal.
Quando o vi recentemente
Nossa terra ainda se vestia de preto, em luto,
E eu me senti derrotada.
Mas Raimundo-Um-Homem-Qualquer disse
“Comadre, nossa terra tem um coração que bate
e persevera, que suporta o insuportável, que guarda o segredo de mãos
e ventres. Nossa terra de onde brotam cactos e umbus também dá
à luz guerreiros. Nossa terra, comadre, é uma mulher”.
Os dias passam. Não vejo Raimundo em canto nenhum,
Mas sinto a barriga da terra sofrer. Aos 65 anos,
Raimundo é pesado para ela carregar.
“Toquem fogo na casa dele!”
Ouvi o coronel berrar
“E metam o filho dele no xilindró”.
O militar responsável por nosso povoado
Depois explicou que tal medida era necessária
Pra manter a ordem e o progresso,
Ou seja, foi por paz e amor!
Capangas armados cercaram a casa de Raimundo,
Como uma cascavel enrolada, pronta pro bote.
A porrada na porta veio com uma ordem de despejo
“Saia de casa agora!”
Mas, generosos, ofereceram um prazo:
“Tem uma hora pra evacuar!”
Raimundo abre a janela, bota a cara no sol e
Berra, confiante: “É nessa casa que eu e meus filhos vamos viver
e morrer, pelo Araripe”. A voz de Raimundo ecoou através do silêncio de morte.
Uma hora depois, conforme prometido, a casa de Raimundo
Foi demolida, os quartos voando pelos ares, estilhaço e caliça
Voam e voltam ao chão, enterrando uma vida inteira de memórias, trabalho, lágrimas
E um passado feliz.
Ontem eu vi Raimundo
Andado por uma das nossas ruas
Raimundo-Um-Homem-Qualquer estava
Como sempre esteve: inabalável em sua determinação.
Leituras para aprofundar o tema:



Ideologia e propaganda na educação, de Nurit Peled
Investigação corajosa sobre como os livros didáticos moldam percepções e ideologias em Israel. Abordando o conflito com a Palestina, revela como a educação pode influenciar a formação cultural e preparar jovens para um complexo cenário de conflito.
Margem Esquerda #43 | Gaza
Como não poderia deixar de ser, Gaza está no centro da nova edição da Margem Esquerda. A revista abre com uma densa entrevista com o historiador palestino-americano Rashid Khalidi, por muitos considerado herdeiro intelectual de Edward Said. Na sequência, o dossiê de capa esquadrinha a atual situação palestina em reflexões de Arlene Clemesha, Samah Jabr, Tithi Bhattacharya, Bruno Huberman e Ilan Pappé. É do artista plástico palestino Yazan Khalili, o ensaio visual da edição. Fechando o volume, nosso editor de poesia traduz e comenta os versos pungentes de Rafaat Alareer, assassinado em dezembro de 2023 por um bombardeio aéreo israelense no norte de Gaza, junto com dois irmãos e quatro sobrinhos.
Cultura e política, de Edward W. Said
Edward Said imprime uma visão universalista em suas análises sobre a questão palestina, inserindo-a no conjunto das grandes lutas pelo reconhecimento de todos os povos a afirmar sua identidade e ter sua expressão política. Em seus livros e artigos, denuncia o racismo ocidentalista, que tenta se legitimar como visão hegemônica do mundo, opõe-se corajosamente à criminalização da luta do povo palestino e de todos aqueles considerados fora dos padrões da chamada civilização ocidental e luta contra a desqualificação da intelectualidade crítica como forma de restrição ao debate acadêmico e político. Cultura e política apresenta um conjunto de artigos políticos e de cultura publicados originalmente, em sua maioria, no jornal Al-Ahram e selecionados por Emir Sader para esta edição brasileira.
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Adelaide Ivánova é pernambucana, poeta e organizadora comunitária da campanha Deutsche Wohnen und Co. Enteignen, que luta pela expropriação de grandes empresas do aluguel em Berlim, onde mora desde 2011. Publicou, entre outros livros, Asma (Nós, 2024), Chifre (Macondo, 2021) e o martelo (Douda Correria, 2015; Garupa, 2017). Este último, livro de poesia documental que investiga a re-traumatização causada por um processo judicial por estupro, venceu em 2018 o prêmio Rio de Literatura na categoria poesia. Mantém a newsletter vodca barata.
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