O fim do genocídio virá com o fim do colonialismo israelense

Foto: Hosny Salah/Pixabay

Por Bruno Huberman.

Este texto é uma resposta a uma coluna de João Pereira Coutinho, publicada na Folha de S. Paulo, que rebateu uma crítica que escrevi, contrapondo-me à interpretação dele de que a aplicação da teoria do colonialismo por povoamento para a Palestina promoveria um novo tipo de antissemitismo. Contudo, a Folha rejeitou a publicação desta última resposta, limitando o bom debate que estava em curso.


Na tréplica de João Pereira Coutinho ao meu texto sobre o uso da teoria do colonialismo por povoamento para interpretar o Estado de Israel e a Questão Palestina, o cientista político faz um esforço para universalizar o colonialismo como toda forma de dominação política entre povos de diferentes identidades ao longo da história. Contudo, mantém a rejeição em reconhecer o colonialismo israelense na Palestina. É como se Coutinho afirmasse: “todos somos colonizadores, menos os israelenses.”

Há claramente uma dificuldade em distinguir Estado, povo e etnia: Israel, os israelenses e os judeus. A crítica anticolonial a Israel não tem nada de antissemitismo, pois não é direcionada ao povo judeu, mas ao Estado colonial israelense. Se este reivindica uma identidade religiosa para si, isso não é responsabilidade dos críticos e dos oprimidos. Afinal, defender o fim do colonialismo português, o fim do Estado colonial português, e até mesmo a expulsão dos portugueses do Brasil entre 1500 e 1822, não seria racismo antibranco, mas simplesmente anticolonialismo.

Na representação que Coutinho faz da história do colonialismo, romanos, incas e britânicos seriam igualmente colonizadores. Essa narrativa hobbesiana certamente diminui a responsabilidade europeia a respeito da barbárie que vivemos hoje. Afinal, o colonialismo revelaria uma suposta natureza violenta da humanidade, tal como identificada por Hobbes: “o homem é o lobo do homem”.

Recomendo a Coutinho a leitura de O despertar de tudo, de David Graeber e David Wengrow. O livro contradiz toda representação a respeito de uma suposta natureza humana, seja dócil, numa leitura rousseauniana, ou selvagem, tal qual Hobbes. A barbárie colonial não é um destino irrefutável da humanidade, mas um produto social constituído a partir de relações materiais específicas.

O colonialismo europeu moderno, inclusive, está inserido em uma dinâmica bastante particular: a capitalista. Não é possível reduzir o colonialismo a um fenômeno político. Tal qual fez um dos pais do liberalismo, John Locke, mas em sentido contrário, é preciso uma interpretação da economia política do colonialismo para entendê-lo. O dispositivo jurídico de “terra nullius”, tão citado por Coutinho, foi criado a partir da interpretação lockeana de que as treze colônias inglesas que formavam os EUA seriam livres, pois seriam abundantes em “terra virgem” de trabalho. A interpretação de Locke sobre a suposta selvageria dos povos nativos não seria cultural, mas econômica: como não trabalhavam a terra, não haveria propriedade privada. Portanto, a terra seria livre para ser colonizada pelos europeus brancos. Este seria o “direito natural” que fundamentaria a “guerra justa” de extermínio dos indígenas. Portanto, para Locke, a expropriação violenta da terra indígena estaria na base do contrato social da modernidade.

Além de um intelectual do liberalismo colonial europeu e do supremacismo branco, Locke investiu no tráfico de africanos escravizados, como acionista da Royal African Company, e foi um dos redatores da Constituição das Carolinas, que defendia o direito da liberdade e da propriedade privada — o que incluía a posse de africanos escravizados. O racismo colonial distinguia aqueles que podiam possuir propriedade privada, os brancos, daqueles que eram posse, os negros. O Estado, assim, atuaria para legitimar, através do uso da violência juridicamente sancionada, essa relação desigual e hierárquica feita para o enriquecimento individual.

Nesse sentido, a liberdade e a democracia são racialmente constituídas não somente para possibilitar uma dominação política, mas para construir uma diferença de classe que permita a acumulação de capital — seja através da violência flagrante nas colônias, seja pela “compulsão silenciosa” do mercado, no centro. Como escreveu Marx, o colonialismo nada mais é do que o capitalismo desnudo, sem as suas vestes.

O genocídio dos palestinos e o fim do colonialismo israelense

O insuspeito historiador israelense Benny Morris afirmou em uma entrevista de 2004: “Mesmo a grande democracia americana não poderia ter sido criada sem o aniquilamento dos índios. Há casos em que o objetivo final justifica atos cruéis que são cometidos no curso da história”. Tal qual Locke, Morris vê o extermínio indígena como base para a liberdade e a democracia brancas (aqui, utilizo o termo branco como categoria de superioridade racial que permite incluir os diversos grupos constituídos dessa característica, como os judeus em Israel). 

Morris continua: “Este lugar [a Palestina] seria mais tranquilo com menos sofrimento se o problema tivesse sido resolvido de uma vez por todas […]. Se [o fundador de Israel, David] Ben-Gurion tivesse realizado uma grande expulsão e limpado toda a Terra de Israel, até o rio Jordão.”

Morris está longe de ser um extremista e aqui defende, abertamente, uma “Israel livre do rio [Jordão] ao mar [Mediterrâneo]”. Historiador da documentação israelense da Nakba, ele se tornou um defensor do processo de limpeza étnica conduzido por Israel em 1948, que resultou na expulsão de 800 mil palestinos e na destruição de 500 vilarejos. Processo que Donald Trump almeja continuar com a expulsão de todos os palestinos da Faixa de Gaza e a ocupação dos EUA. O extermínio completo por Ben-Gurion teria assegurado definitivamente, tal qual os EUA, a maioria demográfica judaica que Israel tem lutado para consolidar desde 1948 através do genocídio contínuo do povo palestino.

Em uma entrevista também de 2004, concedida do seu bunker sitiado por tropas israelenses durante a Segunda Intifada (2000-2006), o palestino Yasser Arafat refletia sobre a força da resistência palestina e como Israel “não conseguiu nos eliminar”. Ele termina a sua declaração com uma comparação: “Nós não somos índios vermelhos”. Coutinho viu, erroneamente, na afirmação de Arafat um reconhecimento de que Israel não seria um Estado colonial. Contudo, o líder palestino quer dizer o oposto. Segundo Arafat, o colonialismo israelense não conseguiu eliminar os seus nativos, os palestinos, diferente dos estadunidenses, que teriam exterminado os “índios vermelhos”. A resistência palestina teria impedido que o seu destino fosse o mesmo do povo massachussett, exterminado com a chegada dos puritanos. Mas, para Coutinho, o fracasso israelense em executar a eliminação completa seria prova de que Israel não é um Estado colonial.

Arafat, contudo, também estava errado. Os povos indígenas dos EUA continuam resistindo, inclusive em solidariedade com os palestinos. A resistência nativa, entretanto, sabe que não irá expulsar os brancos da Turtle Island, o nome da América do Norte para alguns povos indígenas. Mas almeja descolonizar o Estado que continua os oprimindo e negando a sua liberdade em pequenas reservas indígenas. A liberdade dos defensores de Trump — e de Joe Biden — continua a ser constituída, tal qual na época de Locke, a partir da permanente colonização que limita a liberdade dos indígenas. Os povos nativos são desproporcionalmente empobrecidos, encarcerados e mortos em relação ao restante dos estadunidenses.

Coutinho, que discorda da minha interpretação tanto sobre colonialismo como sobre natividade, ficará feliz em descobrir que um sujeito pode deixar de ser colono sem um deslocamento geográfico além-mar. Tal qual a indigeneidade, a colonialidade também é uma identidade relacional. Colono-indígena é um binômio que existe de forma dialética. É preciso extinguir um para o outro deixar de existir. O colonizador almeja eliminar os nativos para ele mesmo deixar de ser um colono; para o colonialismo se naturalizar. Daí advém a percepção errônea de que os indígenas nos EUA ou no Brasil desapareceram. A reafirmação da identidade indígena impede esse apagamento e mantém a contestação às relações desiguais e hierárquicas criadas pelo colonialismo, mesmo sob a democracia liberal.

Contudo, para esse processo cessar, não é necessário o inverso, a eliminação física do colono. Da mesma forma que a relação colonial transformou os puritanos brancos em colonos e os massachussetts em indígenas, assim como os judeus israelenses em colonizadores e os palestinos em colonizados, é essa relação constituída pelo colonialismo que deve ser destruída para ocorrer a descolonização. Desse modo, os judeus israelenses, assim como os brancos puritanos, deixarão de ser colonos. E os povos indígenas, inclusive os palestinos, serão livres.


Bruno Huberman é professor de relações internacionais da PUC-SP, onde é vice-líder do Grupo de Estudos de Conflitos Internacionais. Integrante do INCT/Ineu, atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado pelo Programa San Tiago Dantas e é autor de Colonização neoliberal de Jerusalém (Educ, 2023). Pela Boitempo, publicou artigo na edição 43 da Margem Esquerda (2024).


Margem Esquerda | #43 abre com densa entrevista concedida pelo historiador palestino-americano Rashid Khalidi a Tariq Ali, artigos de Arlene ClemeshaSamah JabrTithi BhattacharyaBruno Huberman e Ilan Pappé, ensaio visual do artista plástico palestino Yazan Khalili e poema de Rafaat Alareer, assassinado em dezembro de 2023 por um bombardeio aéreo israelense. 

Caminhos divergentes, de Judith Butler
A partir das ideias de Edward Said e de posições filosóficas judaicas, Butler articula uma crítica do sionismo político e suas práticas de violência estatal ilegítima, nacionalismo e racismo patrocinado pelo Estado. Além de Said, reflete sobre o pensamento de Levinas, Arendt, Primo Levi, Buber, Benjamin e Mahmoud Darwish para articular uma nova ética política, que transcenda a judaicidade exclusiva e dê conta dos ideais de convivência democrática radical, considerando os direitos dos despossuídos e a necessidade de coabitação plural.

Ideologia e propaganda na educação, de Nurit Peled-Elhanan
A professora de linguagem da educação investiga os recursos visuais e verbais utilizados em livros didáticos de Israel para representar a população palestina. Mobilizando o arcabouço teórico e metodológico da análise crítica do discurso e da análise multimodal, Nurit Peled-Elhanan detalhada os mecanismos pelos quais esses materiais escolares moldam um imaginário de marginalização: o discurso aparentemente científico e neutro é, em realidade, carregado de signos de violência, desprezo e intolerância que oculta a população palestina.

Cultura e política, de Edward W. Said
Edward Said imprime uma visão universalista em suas análises sobre a questão palestina, inserindo-a no conjunto das grandes lutas pelo reconhecimento de todos os povos a afirmar sua identidade e ter sua expressão política. Sua obra denuncia o racismo ocidentalista, que tenta se legitimar como visão hegemônica do mundo, opõe-se à criminalização da luta do povo palestino e de todos aqueles considerados fora dos padrões da chamada civilização ocidental.

A liberdade é uma luta constante, de Angela Davis
Esta ampla seleção de artigos traz reflexões sobre como as lutas históricas do movimento negro e do feminismo negro nos Estados Unidos e a luta contra o apartheid na África do Sul se relacionam com os movimentos atuais pelo abolicionismo prisional e com a luta anticolonial na Palestina. A obra da intelectual e ativista Angela Davis ensina também a pensar a nossa luta em relação a todos os “condenados da terra”, como escreveu Frantz Fanon.


O plano de Trump para Gaza: blefe ou cartada final?, por Bruno Huberman
Gaza é aqui: um poema de Fadwa Tuqan tra(du)zido para o sertão nordestino, por Adelaide Ivánova
Pensar após Gaza, por Vladimir Safatle
Instrumentalização do antissemitismo: um gerador eterno de privilégios, por Antony Lerman
Poema de número 4, por Zakaria Mohammad
Palestinização do mundo, por Berenice Bento
Pensar a Palestina após Gaza: uma breve historiografia da Nakba, por Arlene Clemesha
Morrer em Gaza: a esquerda não pode mais permanecer calada, por Raul Zelik
As palavras apodrecem, por Luiz Eduardo Soares
O imperialismo capitalista sustenta o colonialismo racista em Israel, por Jodi Dean
A Palestina fala por todos nós, por Jodi Dean
Alemanha me censurou por apoiar a Palestina, por Nancy Fraser
Manifesto de criação da Rede Universitária de Solidariedade ao Povo Palestino
Orientalismo e colonialismo, por João Quartim de Moraes
O expansionismo israelense e o impasse árabe, por Luiz Bernardo Pericás e Osvaldo Coggiola
Por que Israel quer calar o mundo?, por Berenice Bento
A gentrificação de Gaza, por Slavoj Žižek
Em defesa de Breno Altman e do povo palestino, por Virgínia Fontes
Al Nakba, uma tragédia sem fim, por Arlene Clemesha
A manipulação do antissemitismo como instrumento de censura às críticas a Israel, por Vozes Judaicas por Libertação
O que é um genocídio?, por Vladimir Safatle
A questão da Palestina e as Brigadas Internacionalistas, por Milton Pinheiro
Por quem os sinos dobram, Gaza?, por Urariano Mota
Genocídio palestino e o grito de Antígona, por Berenice Bento
O genocídio palestino e palavras que matam, por Berenice Bento
Além do luto: sobre amar e ficar com aqueles que morrem em nossos braços, por Devin G. Atallah
Vidas palestinas importam, por Luis Felipe Miguel
O alcance do luto, por Judith Butler
Palestina, meu amor, por Berenice Bento
Razão e desrazão de uma guerra, por Mauro Luis Iasi
Sobre a Palestina, a G4S e o complexo industrial‑prisional, por Angela Davis
Israel e Hamas: onde está a verdadeira linha divisória?, por Slavoj Žižek
Fontes da resistência palestina, por Osvaldo Coggiola
Levante na Palestina, por Tariq Ali
A esquerda, o sionismo e a tragédia do povo palestino, por Domenico Losurdo
A limpeza étnica da Palestina e os livros didáticos de Israel, por Nurit Peled-Elhanan
O paradigma do sofrimento e o conflito Israel-Palestina, por Christian Dunker
Judith Butler e a crítica judaica do sionismo, por Soraya Smail
A Palestina apagada do mapa, por Guilherme Boulos
A ocupação é a atrocidade, por Edward Said
Existências diaspóricas. Caminhos que convergem, por Juliana Borges



1 Trackback / Pingback

  1. Aldeia Nagô

Deixe um comentário