Morrer em Gaza: a esquerda não pode mais permanecer calada

Quem nega às pessoas o direito à vida cruza a fronteira em direção ao fascismo.

Foto: Ash Hayes (Unsplash)

Por Raul Zelik

Tradução de Adelaide Ivánova

Por muito tempo concordei com o argumento de Hermann Gremliza, editor da revista Konkret: na Alemanha, onde grande parte da população aceitou o extermínio dos judeus como um projeto de Estado, há coisas mais importantes a fazer do que criticar Israel. Afinal, se direitos humanos estão sendo espezinhados em tantos países do mundo, por que é que a esquerda alemã deveria interferir especificamente no Estado Judeu?

Um amigo judeu, que emigrou de Israel há anos por não conseguir mais tolerar o nacionalismo sionista dos seus compatriotas, sempre achou que a minha posição estava errada. Se levarmos a sério a frase “’Nunca mais!’ é agora”,1 então ela deve se aplicar a todas as situações em que uma população é desumanizada – e esse é, sem dúvida, o caso dos palestinos em Israel. Além disso [segundo o amigo do autor], seria simplesmente muito conveniente driblar debates sobre a luta contra o antissemitismo, por um lado, e a resistência contra o regime de ocupação israelita, de outro, e como essas duas lutas podem andar de mãos dadas.

Os desenvolvimentos dos últimos meses provaram que o meu amigo tinha razão. Por medo de ser vista como antissemita, uma grande parte da esquerda alemã manteve-se em silêncio sobre a mais horrível guerra imperialista do nosso tempo. Ao fazê-lo, tornou-se cúmplice de uma política que nega o direito à vida a dois milhões de pessoas em Gaza.

Estou ciente das objeções que surgirão, contra o argumento acima: os assassinatos do Hamas também não negam a milhões de judeus o seu direito à vida? E o projeto de erradicação do regime iraniano contra Israel? Ou – olhando para outra guerra – o bombardeamento da população ucraniana pela Rússia não é igualmente cruel? A diferença crucial é que o Estado alemão não considera o Hamas, o Irã ou a Rússia como aliados. Existiam relações econômicas com o Irã e a Rússia, mas nenhum apoio financeiro ou político aos regimes [ao contrário do caso de Israel, que é aliado político e parceiro econômico da Alemanha]. Ninguém no Estado alemão pensaria em descrever as críticas à Rússia como “russofobia” ou ao Irã como “estruturalmente islamofóbicas” [ao contrário das críticas ao Estado de Israel, que são automaticamente tachadas de antissemitas]. E não há banalização ou ocultação dos ataques russos [como há ocultação dos ataques de Israel contra Gaza] nos meios de comunicação social – muito pelo contrário.

O relatório do Tribunal Internacional de Justiça de 19 de julho, sobre a política de Israel na Palestina, afirmou basicamente coisas já há muito conhecidas, mas que deveriam abrir nossos olhos de todo jeito. Ao contrário do que foi descrito na maioria dos meios de comunicação alemães, o relatório não apenas aponta que a política de ocupação nas áreas autônomas palestinas é ilegal à luz do direito internacional. O relatório vai muito mais longe: afirma que a legislação extraordinária que regula os territórios palestinos se assemelha a um regime de apartheid e que a comunidade internacional deve fazer o possível para acabar com esta prática.

O movimento internacional BDS – Boicote, Desinvestimento e Sanções (que é o apelo ao boicote a Israel, à retirada de investimentos do país e à sua sanção) tem utilizado, há anos, o mesmo argumento que o Tribunal Internacional de Justiça apresentou em 2024. Para o BDS, Israel viola o direito internacional (com suas políticas de assentamento, roubo sistemático das terras da população e repressão massiva da resistência palestina) e deve ser impedido de fazê-lo, via pressão internacional.

Sim, há pessoas que aderiram à campanha do BDS por motivos antissemitas. Mas também há judeus de esquerda e outros internacionalistas que apoiam o boicote a Israel porque, para eles, o boicote representa uma consequência lógica do slogan “‘Nunca mais!’ é agora”. Se os palestinos são sistematicamente privados de seus direitos devido às políticas de Israel, deve haver resistência a estas políticas. Não há nada de antissemita em tal argumento.

O discurso do Primeiro-Ministro Netanyahu semana passada no Congresso dos EUA nos mostra que há ainda outro erro no argumento de Hermann Gremliza: para a ordem mundial ocidental, o conflito no Oriente Médio não é simplesmente um dos muitos conflitos no mundo. O primeiro-ministro israelense fez um discurso aos legisladores dos EUA que, na minha opinião, teve conotações flagrantemente fascistas. O assassinato de dezenas de milhares de civis foi simultaneamente negado e celebrado por Netanyahu. As vítimas eram terroristas que não mereciam outra coisa senão a morte, anunciou o chefe do governo israelense, sob aplausos estrondosos dos legisladores norte-americanos. E repetidas vezes houve aplausos de pé pela exigência de mais guerra, mais armas, mais expulsão.

Embora cerca de cem representantes do Partido Democrata tenham discordado do discurso de Netanyahu, sua aparição no Congresso mostra quão depravada se tornou a ordem mundial ocidental. O parlamento da maior potência militar do mundo celebra com aplausos quando um dos seus aliados regionais declara que a morte de dezenas de milhares de civis é um projeto. Hoje em dia, em todo o mundo, a extrema direita está se unindo em torno de reivindicações que negam a certos grupos o direito à vida. Neste contexto, os regimes islâmicos e a extrema direita na Europa e nos EUA são muito mais semelhantes do que eles próprios estão dispostos a admitir. Mesmo aqui, sob governos democráticos, tais posições são agora normalizadas e celebradas nos parlamentos e nos meios de comunicação. Eu diria que uma fronteira importante para o fascismo está sendo cruzada aqui. A esquerda alemã deveria compreender que não pode mais permanecer calada sobre isto.

Publicado no nd-aktuell de 1º de agosto de 2024.

Nota
1 Nota da tradutora: a frase “‘‘Nie wieder!’ ist jetzt” é um slogan recente, que faz alusão ao slogan mais antigo “Nunca mais!” [“Nie wieder!”] que, por sua vez, faz parte do leque de práticas da assim-chamada “Erinnerungskultur” [“cultura da lembrança”] – uma série de atitudes/práticas na política e na cultura, cujo objetivo é lembrar que o Holocausto não pode se repetir.


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Raul Zelik é escritor, jornalista, tradutor e cientista político alemão.

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