O trabalho que estrutura o capital desestrutura a humanidade

Leia o prefácio à nova edição revista e ampliada de "Os sentidos do trabalho", que celebra os 25 anos de lançamento deste estudo clássico e ainda atual.

Murais da indústria de Detroit, Diogo Rivera (1933). Imagem: WikiCommons

Por Ricardo Antunes

Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho foi lançado originalmente em 1999, pela Boitempo. De lá para cá, houve uma edição ampliada e atualizada (2009) e muitas reimpressões. No exterior, foi publicado na Argentina (Herramienta, 2005); na Itália (Jaca, 2006, e Punto Rosso, 2017); na Holanda e na Inglaterra (Brill, 2012); em Portugal (Almedina, 2013); nos Estados Unidos (Haymarket, 2013); e na Índia (2015).

Não se tratando de apresentar nesta nota sucinta o que se encontra amplamente desenvolvido no livro, vale indicar que a imprescindibilidade do trabalho no mundo contemporâneo é evidente, ao menos em duas dimensões cruciais:

1) Quando o trabalho é entendido como atividade vital (Marx), como uma dimensão intrínseca e constitutiva da história humana, uma vez que está presente em todos os momentos da vida, desde a gênese do ser social. Sem essa decisiva dimensão ontológica, histórica e concreta, que produz e reproduz a vida social, a humanidade nem sequer poderia existir.

2) Sem o labor, o capital, em última instância, não tem como se reproduzir. Sem mais-valor, o mundo financeiro, que parece ter vida autônoma, evapora e perde seu lastro material essencial.

É exatamente por isso que o mundo do capital financeirizado e plataformizado reinventa, em pleno século XXI, como um Frankestein digital, modalidades pretéritas e perversas de exploração, expropriação e espoliação que encontraram vigência nas fases iniciais do capitalismo industrial e que hoje estão sendo “reinventadas” pelo sistema de reprodução antissocial do capital, operando uma simbiose medonha e horripilante, na qual o “novo” – o mundo dos artefatos digitais, dos algoritmos e da inteligência artificial – convive com tranquilidade com a devastação ilimitada do trabalho (sem falar da natureza e do gênero humano) em todos os cantos do mundo, alterando somente a intensidade dos vilipêndios. Basta olhar para o mais global de todos os trabalhos, aquele realizado por imigrantes.

Nesta edição de 25 anos, os textos de capa foram atualizados, e a esplendida contribuição de nosso querido István Mészáros tornou-se prefácio, como, aliás, era a proposta inicial, quando da publicação em 1999.

Visando a apontar elementos da atualidade das teses centrais de Os sentidos do trabalho, acrescentamos um apêndice, “Uberização do trabalho e capitalismo de plataforma: uma nova era de desantropomorfização do trabalho”, que explora, empírica e analiticamente, algumas das mutações em curso a partir da expansão das plataformas digitais e do trabalho uberizado. Demonstramos que a monumental expansão das grandes plataformas digitais, além de não prescindir do trabalho humano, vêm praticando uma simbiose nefasta entre avanço digital e precarização do trabalho, recuperando formas pretéritas de exploração, expropriação e espoliação que tiveram vigência no período que podemos denominar como protoforma do capitalismo.

Além disso, a intensidade dessas “novas” modalidades de trabalho, agora sob o universo maquínico digital, sugere que estamos adentrando em uma era de desantropomorfização do trabalho, provocada pela eliminação de amplos contingentes de trabalho vivo que são substituídos pelo trabalho morto (algoritmos, inteligência artificial, internet das coisas etc.), ampliando e exasperando as formas de extração de mais-valor em quase todas as esferas invadidas pelo capital.

Assim, a conclusão apresentada originalmente quando da publicação original deste livro continua atual: o trabalho que estrutura o capital desestrutura a humanidade. Em contrapartida, o trabalho que desestrutura o capital pode efetivamente reorganizar e emancipar a humanidade.

Conjuntamente com a luta vital pela preservação da natureza e pela destruição radical da exploração/opressão de classe, gênero, raça e etnia, a luta da classe-que-vive-do-trabalho traz consigo a efetiva possibilidade e potencialidade para superar o sistema de reprodução antissocial do capital.

Para finalizar, deixo um agradecimento muito especial a Ivana Jinkings e toda a equipe da Boitempo, responsáveis por um cuidado editorial minucioso, mais uma vez presente nesta nova edição.


Debate com Graça Druck, Ricardo Antunes e Raquel Raichelis. Mediação de Ricardo Festi. Terça-feira, 15 de abril de 2025, às 14h. Ao vivo na TV Boitempo.


Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho, de Ricardo Antunes
Extremamente atual, a obra analisa como o trabalho abstrato possibilitou, por meio de uma classe trabalhadora excluída do processo produtivo, o crescimento de uma sociedade descentralizada do ato laboral. Da ascensão do neoliberalismo ao longo dos anos 1990 ao capitalismo de plataforma do século XXI, assunto abordado também no novo apêndice, o texto Antunes mantém a contemporaneidade.
 
“Com a ampliação do universo digital, por meio de tecnologias de informação e comunicação presentes cada vez mais na produção (em sentido amplo), encontramos novos componentes que merecem uma análise cuidadosa, de modo a captar qual é o papel que essas tecnologias vêm desempenhando nas formas de acumulação presentes no capitalismo contemporâneo”, escreve Antunes.


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Ricardo Antunes é professor titular de sociologia do tabalho na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador da coleção Mundo do Trabalho, da Boitempo. Organizou os livros Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IIIIII IV, Infoproletários: a degradação real do trabalho virtualUberização, trabalho digital e indústria 4.0 e Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais, todos publicados pela Boitempo. É autor, entre outros, de Os sentidos do trabalho (também publicado nos EUA, Inglaterra/Holanda, Itália, Portugal, Índia e Argentina), O caracol e sua conchaO continente do labor, O privilégio da servidão e Capitalismo pandêmico.

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