“O segundo sexo”: ponto de partida de toda uma geração de feminista

Qual a novidade representada pelo movimento feminista nos anos 1970 e o que Simone de Beauvoir tinha a ver com isso? Leia um trecho do artigo de Maria Lygia Quartim de Moraes, "O feminismo político do século XX", publicado originalmente na revista Margem Esquerda #9.

Simone de Beauvoir ao lado de Sartre durante as celebrações do VI Aniversário da China Comunista, em Pequim, 1º de outubro de 1955 (via Wikimedia Commons).

Por Maria Lygia Quartim de Moraes

Um novo feminismo

Pertenço à geração de mulheres para as quais os livros de Simone de Beauvoir, especialmente O segundo sexo e Memórias de uma moça bem-comportada, tiveram uma importância decisiva: ajudaram a nomear um mal-estar difuso e a entender a situação da mulher como produto da história e da sociedade. Mais do que isso, a experiência de Simone e seu pacto amoroso com Sartre exerceram um fascínio extraordinário. Simone não queria ter filhos, nem criar família, tampouco viver como uma burguesa acomodada.

É um desses casos em que vida e obra se encontram, porque, ao adotar o existencialismo filosófico, ela fez de seu projeto de vida – produzir uma obra de valor universal – o objeto de suas reflexões e de seu trabalho teórico. Sua biografia remete aos personagens de seus romances e estes aludem às experiências reais de Simone – ela na intimidade, Sartre, a relação entre ambos –, rompendo com convenções burguesas e apresentando um estilo de vida pouco convencional.

Como deixar de admirar a ousadia dessa mulher que vivia num quarto de hotel – distante das atividades familiares típicas das mulheres de classe média –, da intelectual que gerou uma rica produção de romances, autobiografias, biografia de Sartre, ensaios filosóficos? Em Balanço final, escrito aos 63 anos, Simone comenta: “Viver sem tempos mortos: esse é um dos slogans de maio de 1968 que mais me tocaram, porque o adotei desde minha infância.”1

Ninguém nasce mulher

O impacto de O segundo sexo foi extraordinário. A versão norte-americana vendeu cerca de 750 mil exemplares e Simone transformou-se na referência do feminismo do século XX. No entanto, vinte anos depois, a própria autora reconheceria os limites de seu trabalho que, embora útil às militantes, “não era um livro militante”. Além disso, naquele momento ela ainda acreditava que a condição feminina evoluiria com o tempo e por isso lhe pareciam justas as críticas das feministas norte-americanas dos anos 70:

Que a mulher seja fabricada pela civilização, e não biologicamente determinada, é um ponto que nenhuma feminista coloca em dúvida. Elas [as norte-americanas] se afastam de meu livro no plano prático: recusam-se a confiar no futuro, querem desde já dirigir seus destinos. Foi nesse ponto que mudei: dou-lhes razão.2

A partir dessa autocrítica, Simone afirma que feminismo é lutar por reivindicações propriamente femininas, paralelamente à luta de classes, e se declara feminista: “Em resumo, no passado achava que a luta de classes deveria ter prioridade sobre a luta dos sexos. Hoje considero que as duas devem ser travadas ao mesmo tempo.”3

Com essas palavras, Simone define a novidade do feminismo dos anos 70: uma nova concepção política da questão do poder e o repúdio à crença ingênua na marcha da humanidade para um crescente progresso – mais do que tudo, um feminismo militante. Simone de Beauvoir foi o ponto de partida de toda uma geração de feminista, mas ela não era, nem se propunha a ser, uma militante feminista; era uma intelectual ligada a Sartre e ao projeto editorial da revista Les temps modernes.

[…]

Notas

  1. Simone de Beauvoir, Balanço final (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), p. 40. ↩︎
  2. Idem, p. 493. ↩︎
  3. Idem, p. 492. ↩︎

A íntegra do artigo “O feminismo político do século XX”, de Maria Lygia Quartim de Moraes, pode ser encontrado na revista Margem Esquerda #9 (2007).

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Maria Lygia Quartim de Moraes é Professora do Departamento de Sociologia do IFCH e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu, ambos da UNICAMP. É autora (com Rubens Naves) do livro Advocacia pro bono em defesa da mulher vítima da violência (Campinas/São Paulo, Editora da Unicamp/Imprensa Oficial, 2002), e ministrou, no primeiro Curso Livre Marx-Engels, a aula de introdução ao livro Sobre o suicídio, de Karl Marx. É a entrevistada da edição #44 da Margem Esquerda, além de ter publicado ensaios em vários números da revista.


Nos últimos anos, o tema da religião tem comparecido cada vez mais nos discursos de esquerda, seja como enigma, lamentação ou bode expiatório – ou, ainda, pelas suas afinidades eletivas com os traços apocalípticos da conjuntura global. Partindo do mote durkheimiano de que “a religião é coisa eminentemente social”, o dossiê de capa desta Margem Esquerda investiga o fenômeno religioso e sua relação com a política no Brasil para além dos chavões e lugares comuns condescendentes. Organizada por Carly Machado, a seleção traz um rico mosaico de textos que abrangem a alarmante ascensão da extrema-direita católica no judiciário, a questão do movimento negro evangélico, a relação entre religião e o debate sobre as fake news, a retórica salvacionista dirigida contra as mulheres evangélicas e até a influência do papado sobre a política doméstica.

A entrevistada da edição é a cientista social Maria Lygia Quartim de Moraes, figura importante do marxismo feminista brasileiro. Em seu tom caracteristicamente ácido e bem humorado, ela repassa sua intensa trajetória política e intelectual e não mede palavras para comentar os impasses e desafios da esquerda no Brasil. A edição ainda traz artigos de fôlego sobre Malcolm X, Clóvis Moura, Fredric Jameson, Paulo Arantes e Antonio Candido, além de um erudito roteiro de estudos sobre Luís de Camões elaborado por ninguém menos que José Paulo Netto. Na seção de homenagens, prestamos tributo a Beatriz Sarlo, Michael Burawoy e Paula Vaz de Almeida. O artista convidado desta edição é Sérgio Romagnolo; a poesia é de Amiri Baraka.



Kollontai: desfazer a família, refazer o amor, de Olga Bronnikova e Matthieu Renault
Figura central na Revolução Russa de 1917, Aleksandra Kollontai foi pioneira do feminismo socialista e a primeira ministra de Estado do mundo contemporâneo. Esta biografia que recupera a vida e a obra dessa revolucionária russa, com destaque para suas críticas às relações de gênero. Os autores apresentam as dificuldades que Kollontai enfrentou no partido referente às questões sobre as mulheres e não deixam de mostrar aspectos contraditórios da biografada.

Antes de a contrarrevolução sexual varrer os avanços pós-1917, Kollontai foi figura central em importantes decisões, como o direito ao aborto e a facilitação do divórcio para as mulheres. Sua trajetória política sempre foi contrária ao senso comum de que questões relativas ao gênero deveriam ser problemas periféricos: “Kollontai não deixaria de demonstrar que a luta pela igualdade homens-mulheres no plano econômico e social e a reinvenção das formas do amor e da sexualidade eram indissociáveis, e que sua trama delineava um programa revolucionário completo, dotado de uma autonomia que não impedia – ao contrário, pressupunha – sua articulação estreita com as ‘tarefas do proletariado’. Por essa razão, a satisfação dessas reivindicações não podia ser adiada eternamente sem comprometer o futuro do próprio comunismo”, escrevem Bronnikova e Renault no prólogo.

A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética, organizado por Graziela Schneider
Uma coletânea histórica de escritos femininos da Revolução Russa de 1917, esta antologia percorre temas como feminismo, emancipação, trabalho, luta de classes, família, leis e religião, permitindo distinguir que houve, de fato, a conquista de direitos desde então, mas demonstrando também como ainda há muito o que conquistar. Os artigos, atas, panfletos e ensaios aqui reunidos são, apesar de clássicos, mais atuais do que nunca. A coletânea vem acrescida de fotografias das autoras e de cenas da Revolução.
Compre junto: Biografia Kollontai + A revolução das mulheres

Mulher, Estado e revolução, de Wendy Goldman
Vencedora do Berkshire Conference Book Award, a obra examina as mudanças sociais ocorridas na sociedade soviética nas duas primeiras décadas pós-revolução, retratando as grandes experiências da libertação da mulher e do amor livre na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) depois da Revolução – e refletindo sobre por que falharam, quando entrou em cena a burocracia stalinista. “Seu tema é a difícil relação entre vida material e belos ideais”, afirma Goldman. O livro examina as condições materiais da União Soviética logo após a Revolução e explora questionamentos relevantes para qualquer movimento social: quando um novo mundo poderá ser criado? Quais são as condições necessárias para se realizar ideais revolucionários? É possível que se crie total liberdade sexual para homens e mulheres sob condições de desemprego, discriminação e persistência de atitudes patriarcais? O que podemos apreender dessa experiência, depois da Revolução Russa? Combinando história política e social, o livro recupera não apenas as lições discutidas por juristas e revolucionários, mas também as lutas diárias e ideias de mulheres trabalhadoras e camponesas.

Rosa Luxemburgo: biografia, de Paul Frölich
Publicada originalmente em 1939, é considerada ainda hoje uma obra de referência indispensável, apresentando com grande inteligência e empatia a apaixonante vida da filósofa e economista marxista: sua juventude na Polônia, os estudos em Zurique, a emigração para a Alemanha, a relação afetiva e erótica com Leo Jogiches, a luta pelas ideias marxistas na social-democracia alemã, a participação na revolução russa em Varsóvia, os anos de prisão na Polônia e, durante a guerra, na Alemanha, em 1919, seu assassinato pelos bandos militares pré-fascistas trazidos para Berlin pelo ministro social-democrata Noske. Frölich analisa também, com grande acuidade, seus principais escritos: A acumulação do Capital (1913), sua grande obra de economia política, a famosa “Brochura de Junius” (A crise da social-democracia) de 1916, onde aparece a fórmula “socialismo ou barbárie”, a crítica (construtiva) aos bolcheviques em A Revolução Russa (1918), e os últimos escritos durante o levante spartakista de 1919.

Intersecções letais: raça, gênero e violência, de Patricia Hill Collins 
Analisando situações como o assassinato de Marielle Franco no Brasil, o conflito na República Democrática do Congo, a condição das mulheres aborígenes na Austrália e da população negra nos Estados Unidos, a autora aponta metodologicamente e de maneira acessível como aplicar o conceito de interseccionalidade em investigações sobre as origens e as consequências violentas – por vezes, letais – da desigualdade e da injustiça.

“Provocativo e desafiador, este livro é fundamental para aquelas e aqueles que buscam compreender as raízes estruturais da violência, a qual Collins se recusa a aceitar como inevitável, convidando-nos a resistir a esse perverso fenômeno. Intersecções letais é uma leitura imprescindível para as pessoas engajadas na luta por justiça social e que buscam aprofundar suas reflexões sobre as conexões entre violência, relações de poder e desigualdades”
— Nilma Lino Gomes

O patriarcado do salário, de Silvia Federici 
Revisitando a crítica feminista ao marxismo e trazendo para o debate perspectivas contemporâneas sobre gênero, ecologia, política dos comuns, tecnologia e inovação, Federici reafirma nesta série de artigos a importância da linguagem, dos conceitos e do caráter emancipador do marxismo. Ao mesmo tempo, esclarece por que é preciso ir além de Marx e repensar práticas, perspectivas e ativismo a fim de superar a lógica social baseada na propriedade privada e desenvolver novas práticas de cooperação social.

Quem tem medo do gênero?, de Judith Butler
Neste seu primeiro livro não acadêmico, Judith Butler analisa como o “gênero” se tornou central em discursos conservadores e reacionários, um fantasma com o objetivo de criar pânico moral e angariar apoio popular a projetos políticos fascistas, autoritários e excludentes.

Intervenção essencial em uma das questões mais inflamadas da atualidade, Quem tem medo do gênero? é uma convocatória arrojada a construir uma coalizão ampla contra as novas formas do fascismo. “É  crucial que a política de gênero se oponha ao neoliberalismo e a outras formas de devastação capitalista e não se torne seu instrumento”, insiste Butler.

“Só mesmo o intelecto e confiança moral deslumbrantes de Judith Butler para nos orientar no labirinto de projeções, confissões, deslocamentos e cooptações que constituem as atuais guerras travadas em torno do gênero. É o sonho de um poder masculinista autoritário ultrapassado que une as diversas frentes dessa batalha – e somente a solidariedade entre todas as pessoas que se encontram na mira do fascismo pode nos salvar. Este livro é uma intervenção profundamente urgente.”
Naomi Klein

“A filosofia de Judith Butler desafia as normas estabelecidas, promovendo diálogos cruciais sobre identidade e igualdade. É leitura fundamental para nos ajudar a construir uma sociedade verdadeiramente emancipatória.”
Erika Hilton

Destinos do feminismo, de Nancy Fraser
A segunda onda do feminismo surgiu como uma luta pela libertação das mulheres e ocupou seu lugar ao lado de outros movimentos radicais. Mas a subsequente imersão do feminismo na política de identidade coincidiu com um declínio de suas utopias e com a ascensão do neoliberalismo. Em Destinos do feminismo, a filósofa Nancy Fraser defende um feminismo radical revigorado capaz de enfrentar os desafios atuais e a crise econômica global.
Conheça mais livros de Nancy Fraser publicados pela Boitempo.

Feminismo e política, de Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli
Uma Introdução abrangente à teoria política feminista, discorrendo sobre temas como prostituição, aborto e representação política. Em tempos de questionamento do movimento, revela como as lutas feministas transcendem as questões específicas de gênero, impactando a estrutura social.

Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade, de Maria Rita Kehl
A obra questiona as relações que se estabelecem entre a mulher, a posição feminina e a feminilidade na clínica psicanalítica. Existe uma diferença irredutível entre homens e mulheres, afinal? Partindo da defesa de uma ‘mínima diferença’, um modo de ser e de desejar através do qual homens e mulheres assumem papéis distintos na sociedade, a autora investiga o campo a partir do qual as mulheres se constituem como sujeitos, de modo a contribuir para ampliá-lo.


Lute como uma princesa, de Vita Murrow
E se o destino das princesas não se resumisse em casar com o Príncipe Encantado e viver feliz para sempre? Conheça um novo lado de suas princesas favoritas nesta exuberante coletânea em que 15 contos de fadas são recontados para uma nova geração de crianças.

A misteriosa história do ca.di.re.me., de Tatiana Filinto
Em um mundo de conexões instantâneas, Julia e Olivia desvendam segredos através de cartas, mergulhando em reflexões entre endereços distantes. Quando o misterioso sumiço do diário compartilhado por elas se entrelaça com o desaparecimento de Zulmira na ditadura, uma trama delicada e cheia de mistério se desenrola. Amizade, amor e transformação costuram esta narrativa única, convidando você a desvendar enigmas e emoções entre páginas.

As mulheres e os homens, de Equipo Plantel
Explorando as nuances das questões de gênero de maneira lúdica, esta história desafia estereótipos por um viés de igualdade e em respeito à pluralidade. Com ilustrações primorosas, foge das cores tradicionais e promove reflexões sobre desigualdade salarial, tarefas domésticas e papéis sociais.

Fala baixinho, de Janaína Tokitaka
Uma história delicada sobre a importância da comunicação e da escuta. Quando dois garotos brigam por uma bola perdida, uma menina tranquila tenta ajudá-los com sua voz suave. Um livro que ressalta as sutilezas da interação humana.

Leotolda, de Olga de Dios
Uma busca fantástica por Leotolda leva Tuto, Catalina e Kasper a experiências únicas. Nessa jornada não convencional, eles contam com a ajuda de dinossauros, sereias e até do próprio leitor. Uma história interativa que estimula a criatividade e a participação das crianças.

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