“Nossos alunos estão se autoeducando maravilhosamente”: uma mensagem da revolta sérvia
À luz do recente colapso do governo na Sérvia, Kosta Jakic, pianista e estudante de medicina belga de origem iugoslava, e Ivan Put, fotógrafo belga, trazem um relato local dos estudantes que ocupam a Universidade de Belgrado, além de mensagens dos filósofos Alain Badiou e Jacques Rancière ao movimento estudantil sérvio, abordando seus pontos de contato com os levantes de Maio de 1968. Desde novembro do ano passado, a Sérvia tem passado por protestos contínuos em resposta à corrupção do governo e à redução dos orçamentos para a educação. Dois meses após as ocupações de universidades organizadas por estudantes, o governo sérvio renunciou. Os estudantes continuam as ocupações em rejeição às décadas de privatização, medidas de austeridade e ineficácia geral do governo. Em cooperação com o coletivo PhD in One Night, Jakic e Put entraram nas ocupações estudantis (plenários) da Faculdade de Ciências da Organização e da Faculdade de Biologia da Universidade de Belgrado para discutir suas demandas políticas e técnicas bem-sucedidas de auto-organização.

Foto: Ivan Put. Acesse ID/ photo agency para ver mais fotos tiradas dentro da ocupação
Por Kosta Jakic e Ivan Put
Milica D., uma estudante de 19 anos da Faculdade de Ciências da Organização, exibe com orgulho um bolo. Na cobertura, há a característica mão vermelha e ensanguentada e a data que marca o início dos piquetes e a tomada da faculdade. É o quarto mês desse piquete, que surgiu em resposta à primeira ocupação na Academia de Artes Dramáticas. Há quatro meses, os protestos têm se multiplicado em todas as universidades sérvias em decorrência da tragédia de Novi Sad, que trouxe à tona a realidade da corrupção estatal desenfreada.

Foto: Ivan Put. Acesse ID/ photo agency para ver mais fotos tiradas dentro da ocupação
Em 1º de novembro de 2024, a cobertura da estação de trem da cidade de Novi Sad desabou, matando quinze pessoas e ferindo gravemente outras duas [nota do editor: mais uma pessoa, um jovem de 18 anos, morreu em decorrência dos ferimentos desde que este depoimento foi escrito]. A estação tinha acabado de ser reformada quatro meses antes e, ainda assim, o governo alegou falsamente que não havia sido feita nenhuma reforma. Após a tragédia, todos os documentos relacionados à construção da estação foram removidos da Internet. Ninguém foi responsabilizado pelo desastre. Ninguém foi preso.
Os primeiros protestos, liderados por estudantes da Academia de Artes Dramáticas de Nova Belgrado, assumiram a forma de um tributo silencioso às vítimas. Eles exigiram transparência e uma investigação sobre os responsáveis pela tragédia. Em 22 de novembro, os estudantes foram brutalmente atacados durante uma comemoração silenciosa. A violência e repressão sancionadas provocaram a atual onda de ocupações estudantis.
“Se não nos sentimos mais seguros nas ruas, então nos retiramos delas e tomamos as universidades”, diz Teodora J. “A polícia não tem permissão para entrar nas faculdades, a menos que tenha permissão do reitor. Aqui, usando o direito à autonomia universitária1, estamos seguros.”
Milica D. está na universidade desde o início de dezembro. Ela explica que é estressante, mas os alunos se apoiam muito e o bom-humor os ajuda a superar a situação. Ela acredita que eles só perceberão de fato a dimensão de suas ações com o passar do tempo.
Os alunos se auto-organizaram em diferentes grupos de trabalho focados em segurança, doações, logística, mídia, documentação e até mesmo “assuntos normativos”, como questões interpessoais ou preocupações individuais. As decisões são tomadas por meio de democracia direta em um plenário que abrange todo o bloco. Qualquer aluno de qualquer faculdade pode participar do plenário e expressar suas opiniões sobre as deliberações e o movimento. Cada voto tem o mesmo peso, e os votos são dados levantando a mão.
“Os relógios da universidade mostram a hora errada, como se eles estivessem em um mundo próprio”, diz Milica. Mas isso não importa. Ela perdeu a noção do tempo; há apenas luz e escuridão. Ela sabe que suas redes sociais estão sendo monitoradas, mas simplesmente dá de ombros. Somente estudantes e funcionários da universidade são autorizados a entrar, e devem passar antes por um controle de segurança, feito pelos membros do grupo auto-organizado responsável pela segurança.
É claro que isso foi uma grande surpresa para alguns. Ninguém esperava isso da geração do iPhone, obcecada pela Internet. “O presidente?”, diz Milica, “ele não é tão importante, sua função é cerimonial e excedeu em muito seus poderes. Queremos apenas que as instituições funcionem adequadamente. Queremos que a justiça seja a mesma para todos.”
Ela não tem aulas há quatro meses. Também não tem ideia de quanto tempo mais a ocupação vai durar ou quais serão suas consequências para o ano letivo. Talvez ela tenha que repetir as disciplinas. “Nós, da Geração Z, podemos suportar muita coisa. Estamos acostumados a isso — passamos pela Covid durante o Ensino Médio.”
Olga Stanojevic (25 anos, estudante de Belas Artes) não se importa com o fato de não haver aulas. Os protestos silenciosos e os piquetes são necessários, e as aulas alternativas atraem mais alunos do que as aulas regulares. Com tanta coisa em jogo, a produção criativa está prosperando nesse movimento.
“Todo o sistema educacional foi negligenciado”, diz a arquiteta Maja Lalic. “É por isso que as ações não se limitam às universidades, mas também se estendem às escolas primárias e secundárias — até mesmo aos jardins de infância. Muitos pais estão demonstrando solidariedade com os professores.”
Lav (13) e Tina (15), dois dos filhos de Maya, não vão à escola há meses. “Se eles tiverem que repetir o ano, que assim seja.”
Todos os dias, exatamente às 11h52 (horário do colapso da estação de trem em Novi Sad), ocorrem manifestações em toda a Sérvia. Os estudantes bloqueiam o tráfego e realizam um protesto silencioso de 15 minutos — um minuto para cada vítima.
Enquanto isso, mais e mais pessoas de todas as classes sociais estão se juntando aos estudantes, incluindo fazendeiros, advogados, médicos, motoristas de táxi e aposentados. O Teatro Nacional, a Filarmônica de Belgrado, a Ópera e teatros menores também aderiram ao movimento, cada um com suas próprias demandas. Todos os dias, os estudantes recebem doações: alimentos, roupas, colchões, cobertores e inúmeros outros produtos.
Na terceira semana de março, os partidários do regime iniciaram sua própria ocupação do Pioneer Park, uma área verde em frente ao Parlamento sérvio. São “estudantes” que afirmam querer voltar a estudar. Entre esses “estudantes” estão veteranos de guerra, universitários cujas faculdades não estão fechadas e figurantes de reality shows da TV local. Supõe-se que o governo esteja pagando para que fiquem no parque. Usando o humor como arma, os estudantes que ocupam os prédios das faculdades estão trabalhando para renomear o local no Google Maps, como “Fake Student Park” [Parque dos Estudantes de Mentira] ou “Student Attraction Park” [Parque de Atrações Estudantis].
Nos últimos meses, estudantes foram presos, detidos e brutalmente atacados. Diante dessa violência, eles fizeram a escolha deliberada de não ter um líder identificável. Dessa forma, o regime não pode atacar ninguém especificamente. Ao mesmo tempo, eles se recusam a se alinhar com a oposição política oficial ao governo e permanecem altamente críticos em relação a ela. Essa é uma característica crucial desse movimento estudantil: ele mantém distância dos partidos políticos, não tem líder, pratica a democracia direta e realiza suas ações com base na igualdade, solidariedade, empatia, justiça e organização coletiva.

Foto: Ivan Put. Acesse ID/ photo agency para ver mais fotos tiradas dentro da ocupação
Os estudantes têm quatro exigências:
- Liberação de todos os documentos relacionados à renovação da estação de trem de Novi Sad.
- Liberação dos estudantes presos nos protestos anteriores e retirada de todas as acusações contra eles.
- Identificação dos responsáveis pela violência contra os estudantes.
- Aumento de 20% no orçamento da educação.
Leia um trecho da carta dos estudantes sérvios aos estudantes do mundo todo:
O mundo está à beira do abismo. A democracia representativa está falhando, nosso futuro está em perigo. Essa é a única maneira de assumir o controle e mudar o mundo. Há inúmeros motivos para fazer piquetes, e cada um sabe melhor qual é o seu.
Traduzam e compartilhem esta carta! Organizem-se e comecem a praticar a democracia direta agora!
Estudantes de todo o mundo, unam-se aos piquetes!Belgrado, Faculdade de Artes Dramáticas, dezembro de 2024
Mensagens ao movimento
“Agradeço à Edição Yugoslavia / PhD In One Night pelas ideias e documentos que me enviaram sobre o movimento de juventude na Sérvia. Esse movimento me lembra muito as primeiras formas da revolta de Maio de 68 na França, talvez com mais determinação, em nível nacional, do que ocorreu na França. Por enquanto, não tenho outra observação a não ser esta: o movimento político popular não deve, não pode permanecer fechado no mundo da juventude burguesa. Ele deve intervir imediatamente e se conectar com o mundo dos trabalhadores, e estar em contato próximo com o movimento proletário. Mantenham-me informado sobre tudo o que está acontecendo! Desejo a vocês muito sucesso!”
Alain Badiou
Paris, 1º de março de 2025
“O movimento estudantil e de juventude na Sérvia contém duas grandes lições para mim.
A primeira é bastante simples: mostra que em uma época em que a resignação às formas mais brutais e cínicas de dominação é quase onipresente no Ocidente, ainda é possível recusar a opressão e se rebelar.
A segunda é que a revolta não é um movimento imprudente que precisa de especialistas para organizá-la ou para traduzir suas demandas na linguagem do poder e nas formas das chamadas instituições representativas.
Para aqueles que lutam contra a opressão, não há outra organização a não ser a auto-organização. Isso significa a ausência de hierarquia, assumindo todas as formas de luta e decidindo coletivamente sobre seus meios através de plenárias igualitárias e equitativas. O movimento de estudantes e jovens na Sérvia nos lembra que não podemos separar o fim dos meios, e que a democracia não é um fim exterior, mas uma prática, a própria vida do movimento. Nesse sentido, esse movimento é um modelo exemplar para nós.”
Jacques Rancière
Paris, 5 de março de 2025.
O relato reproduzido acima foi originalmente publicado no blog da editora Verso, e traduzido para o português por Pedro Hussak, professor de filosofia e estética na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Agradecemos a Ivana Momčilović, do coletivo PhD In One Night, pelo envio do texto e das fotos.
Recentemente, o Blog da Boitempo republicou um manifesto da comunidade acadêmica internacional em solidariedade ao movimento estudantil sérvio. Entre os signatários estavam e escritora Annie Ernaux e diversos autores da Boitempo, como Alain Badiou, Etienne Balibar; Jacques Rancière; Judith Butler; Kohei Saito; Nancy Fraser; Slavoj Žižek; Vladimir Safatle e Wolfgang Streeck.
Notas
- O Artigo 72 da Constituição Sérvia e a Lei do Ensino Superior de 2021 conferem um alto grau de autonomia às universidades sérvias. Isso inclui permitir que as instituições regulem suas políticas internas e questões relacionadas aos alunos. Como mencionado por Teodora, a Universidade de Belgrado não permite a entrada de forças policiais sem o consentimento explícito da administração. ↩︎
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Kosta Jakic é pianista e estudante de medicina belga, de origem iugoslava
Ivan Put é fotógrafo belga.
PARA SE APROFUNDAR NO ASSUNTO



O ódio à democracia, de Jacques Rancière
Breve e contundente ensaio sobre o ódio à democracia e o mal-estar dos privilegiados à medida que a inclusão social cresce. Revela o caráter conflituoso da expansão da democracia, provocando questionamentos sobre sua natureza e instituições. Uma análise oportuna do contexto político atual.
A hipótese comunista, de Alain Badiou
Um chamado à revitalização do comunismo como uma ideia viva e necessária para a política contemporânea, destacando o potencial da “hipótese comunista” como uma resposta aos desafios atuais. O filósofo francês rejeita o fracasso como o fim da experiência comunista e instiga uma nova abordagem política.
São Paulo: a fundação do universalismo, de Alain Badiou
Uma reflexão revolucionária sobre o apóstolo Paulo, abordando sua influência no universalismo e destacando a conexão entre um sujeito sem identidade e uma lei sem suporte. Uma investigação sobre como Paulo provocou uma revolução cultural que ainda impacta nossa compreensão da verdade e da política.
A década da revolução perdida: a onda de manifestações que incendiaram o mundo, de Vincent Bevins
Da chamada Primavera Árabe ao Gezi Park, na Turquia, do Euromaidan, na Ucrânia, às rebeliões estudantis no Chile, até as jornadas de Junho de 2013 no Brasil, Bevins apresenta um relato detalhado dos movimentos de rua e suas consequências. Ele se baseia em quatro anos de pesquisa e centenas de entrevistas realizadas em todo o mundo, bem como em suas próprias experiências como correspondente no Brasil, onde uma explosão de protestos liderados por progressistas levou, anos depois, a um governo de extrema direita que incendiou a Amazônia.
Uma investigação cuidadosa revela que o pensamento convencional sobre mudanças revolucionárias está bastante equivocado. Nesta obra inovadora, que cobre uma abrangente cadeia de eventos e conta com prefácio inédito do autor à edição brasileira, manifestantes fazem uma retrospectiva dos sucessos e das derrotas, oferecendo lições urgentes para o futuro.
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